As histórias em torno do Natal foram “domesticadas” ao longo do tempo. Pela tradição das igrejas, foram espiritualizadas ao ponto de não dizerem nada de concreto sobre a vida das pessoas; pela sociedade e seus mecanismos políticos e econômicos foram transformadas em propaganda e incentivo para o consumo desenfreado.
O presépio se tornou um teatro inofensivo e o menino da manjedoura uma referência estéril de uma noite de festa e comilança.
Os textos bíblicos alusivos ao Natal são símbolos teológicos de tradições religiosas muito distintas entre si – mas todas diametralmente opostas à pasteurização que veio a se tornar o Natal do consumo e ideologicamente orientado para a manutenção do status quo.
A manjedoura é, por si só, uma denúncia evidente: não há lugar para todos nesse mundo vil. Há aqueles a quem só lhes restam os espaços dos bichos. Há quem sequer o espaço para nascer lhes é resguardado. Há aqueles que, em algum sentido, não têm até mesmo o direito de nascer. A manjedoura denuncia uma sociedade de exclusão. O Deus revelado no Natal de Jesus é, ele mesmo, um excluído – um apartado das hospedarias e dos direitos.
O recenseamento é símbolo da dinâmica política que faz das pessoas massas de manobra que se deslocam ao sabor de interesses de uns poucos. Maria e José são obrigados a saírem de Nazaré rumo a Belém. Fazem o mesmo movimento que obrigou Abrão a sair de sua casa em Ur, ou o que tem feito sistematicamente africanos arriscarem a vida no Mediterrâneo em busca de uma terra prometida (e sempre negada) na Europa. O Deus revelado no Natal de Jesus é, ele mesmo, um migrante – um retirante sem onde reclinar a cabeça.
Os magos que vieram do oriente visitar o menino revelam abertura para o diferente, para o estrangeiro. Outra cultura, outra religião, outra cor de pele, outras pessoas. A estrela que os conduziu é símbolo da tolerância que precisa – hoje mais do que nunca – inspirar mentes, corações e braços. Estrela que supera xenofobia, racismo, homofobia e tantas outras formas de violência. O Deus revelado no Natal de Jesus é, ele mesmo, um símbolo de abertura – do respeito que transcende as verdades pré-concebidas.
Os pastores a quem o anjo do Senhor apareceu com a boa notícia – “não tenham medo ...” – sinalizam os destinatários preferenciais do Evangelho: gente simples que lavra a terra, que têm olhos e ouvidos para os anjos e que é capaz de acolher a presença de Deus (mesmo nos trapos que envolvem um recém-nascido num curral de animais). Os pastores de Belém ajudam a entender a máxima da Palavra de Deus – “não tenham medo ...”. O Deus revelado no Natal de Jesus é, ele mesmo, um trabalhador – gente que, na simplicidade da fé, luta contra o medo para sobreviver.
Herodes é a representação por excelência da ânsia pelo poder e da lógica do vale tudo na garantia do trono. Ao mandar assassinar as crianças de até dois anos de idade, Herodes se torna o símbolo de um mundo que deixa morrer à míngua milhões de crianças sem comida, saneamento, saúde, segurança e educação mundo afora; símbolo de uma cultura que erotiza e monetiza a infância, e rouba-lhe a chance de crescer com a serenidade que os pequenos precisam. O Deus revelado no Natal de Jesus é, ele mesmo, um perseguido – uma vítima inocente que paga o preço dos ambiciosos.
Num tempo de mulheres abandonadas à própria sorte e vítimas permanentes do machismo e da violência masculina, José, “sendo justo e não a querendo infamar”, foi sensível à voz do anjo e acolheu Maria como parceira; ao seu lado assumiu a paternidade do filho de Deus. O Deus revelado no Natal de Jesus é, ele mesmo, um bastardo – desses que tantos desejam na cadeia antes dos dezoito.
Maria é mais do que uma jovem piedosa que aceita passivamente uma missão; Maria questiona o próprio Deus – “como isso se dará?”; Maria é um sujeito que acolhe os desígnios de Deus; ela faz uma escolha – “que se cumpra em mim a sua vontade”; Maria enfrenta e denuncia – “derrubou governantes e exaltou os humildes; fartou os famintos e despediu de mãos vazias os ricos.” Maria é mais do que um útero – é toda mulher que coopera na construção do caráter de filhos que aprendem o que é ser, ao mesmo tempo, sensível à voz de Deus e bravo na denúncia das injustiças. O Deus revelado no Natal de Jesus é, ele mesmo, uma mulher – dessas que, vítimas de todo preconceito e discriminação, reconhecem em Deus mais do que religião e rito; enxergam-no como mãe que luta.
A encarnação é afirmação de uma fé que reconhece na carne a sede da presença de Deus. É mais (ou menos) que o corpo – é a carne mesma, o espaço da fraqueza, da dor, da dúvida, do tropeço. É uma fé que aspira à carne. Não é o homem que anseia por ser como Deus; é o próprio Deus que se esvazia e assume a carne humana. É aqui – na minha carne – que Deus habita. O Deus revelado no Natal de Jesus é, ele mesmo, “o verbo que se fez carne”.
O Natal é bem mais do que árvores, bolas, presépios e presentes. Isso mais esconde do que revela, mais engana do que esclarece. O Natal de Jesus é político – porque assume o lugar do trabalhador, do excluído, do retirante, da mulher, do perseguido e de todo aquele que sente na carne, de fato, o que é nascer no curral dos animais.
Por tudo isso, desejar “feliz” Natal não é o mais adequado. É só mais um jeito de domesticar a potência da manjedoura.
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