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A vergonha dos tribunais






Participei dias atrás de uma aula de Direito Constitucional. O tema da aula eram os Direitos Fundamentais e dentre os direitos fundamentais o professor refletia sobre a liberdade de crença. A liberdade e a possibilidade de expressão da fé religiosa por parte de cada cidadão.


A discussão aprofundou-se e falamos sobre a presença de símbolos religiosos nas repartições públicas brasileiras. Houve o relato sobre o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul em que uma medida administrativa interna desse tribunal proibiu a colocação de crucifixos nas repartições e nos próprios espaços de tribunal; nas salas do júri, por exemplo.


A alegação e a justificativa do tribunal é que o estado é laico e que recursos públicos não podem ser utilizados para patrocinar a manifestação religiosa de um grupo religioso em particular. No caso dos crucifixos, o catolicismo ou, de maneira mais abrangente, o cristianismo.


Essa decisão do Estado do Rio Grande do Sul foi levada à discussão pelo Conselho Nacional de Justiça que chegou a conclusão diversa. Há uma diferença entre estado laico e estado laicista.


A filigrana nas palavras foi utilizada pelo CNJ para mostrar que, sim, o Brasil é um estado laico, mas não é laicista, no sentido de que, entende que ao longo do tempo a cultura brasileira absorveu e está, portanto, permeada por elementos das tradições religiosas. E o crucifixo não é apenas o símbolo de uma confissão religiosa específica, mas ele traduz uma manifestação cultural mais ampla. Por essa razão o entendimento do CNJ é que sim, os tribunais, as salas de julgamento, de audiências, podem ter afixados em suas paredes, por exemplo, um crucifixo.


Eu gostaria de fazer duas observações sobre essa questão e nenhuma delas tem a ver com a discussão sobre o estado laico e os símbolos religiosos. Essa é uma discussão válida, profunda, inquietante e para a qual já há argumentos muito consistentes e bastante razoáveis. Minhas observações são de natureza religiosa, institucional e teologicamente.


A primeira delas tem a ver com o fato de que a religião dominante no Brasil durante mais de quatro séculos - a Igreja Católica Romana - tem sim no crucifixo um dos seus símbolos mais potentes. E é claro que a exibição desse símbolo em repartições públicas demonstra o alcance, a abrangência, o poder, não apenas dessa religião, mas também da instituição que oficialmente a apregoa.


A simples presença do crucifixo nos espaços públicos - e não apenas dentro desses espaços, mas espalhados pelas cidades, por exemplo, afixados nos topos das montanhas, em praças públicas e em outros espaços que não são necessariamente espaços religiosos - revela o poder de comando, de persuasão cultural que o cristianismo, e, de maneira mais específica, o catolicismo teve e continua tendo na sociedade brasileira.


Quando esse símbolo representa simplesmente uma instituição ele perde o seu valor original. Digo isso porque os símbolos têm uma origem. E a origem dos símbolos está diretamente ligada ao significado que esse símbolo produz na vida concreta das pessoas.


A cruz - que era um instrumento de tortura e da execução da pena capital, a pena de morte no Império Romano - tornar-se o símbolo de uma religião já é algo surpreendente. Algo que deve promover uma reflexão. Pelo menos deveria promover um questionamento em toda pessoa que olha para este símbolo, não apenas uma cruz, mas uma cruz, com um ser humano dependurado nela, agonizando e morrendo. Esse é um retrato de uma violência extrema e essa combinação de um instrumento de tortura e um ser humano torturado e morto tornarem-se símbolo da fé de multidões ao longo dos séculos, não pode passar como algo corriqueiro.


Existe um outro elemento ainda na reflexão sobre esse símbolo. Aquele ser humano dependurado na cruz não é um ser humano acusado de ter participado de um crime, ou pelo menos um crime contra a vida, contra a dignidade, contra a propriedade.

É um ser humano acusado - no seu momento histórico - de ameaçar as bases de sustentação daquela sociedade dominada pelo Império Romano e administrada internamente pelas autoridades do Templo de Jerusalém.


Jesus crucifixado representa um conjunto de elementos que mostram a indignidade a que estavam submetidas as populações da palestina do primeiro século da era cristã.


O primeiro ponto, portanto, que gostaria de tratar é esse. Esse símbolo. O símbolo de uma violência e de uma injustiça tornou-se o símbolo de uma religião. Isso, por si só, é muito potente. E é isso que deveria ser sempre de novo lembrado.


Mas parece que foi normalizado, banalizado a tal ponto, que esse símbolo fica espalhado por todos os cantos e não causa mais o espanto, o escândalo que sempre deveria causar.


Nesse sentido, a Igreja, que é a instituição que tem nesse símbolo a sua maior representação, é como se também ela, a própria instituição, fosse diminuída e perdesse a potência da mensagem que carrega.


O segundo ponto que gostaria de refletir tem a ver com a religião, mas mais: a presença da religião nessa sociedade.


Talvez, a presença de um crucifixo em uma sala de audiência em que pessoas são acusadas, julgadas e sentenciadas, seja um lembrete para toda e qualquer sociedade - independente da confissão religiosa que seus integrantes tenham - que os tribunais legitima e legalmente constituídos podem, não raras vezes, cometer injustiças profundas.


Jesus foi julgado dentro do arcabouço legal, normativo, processual do Império Romano e das autoridades judaicas do Templo de Jerusalém. Mas a despeito de sua inocência, foi condenado a uma morte desumana, cruel, aviltante. Exposto a vergonha e à humilhação.


A cruz, o crucifixo, portanto, são uma lembrança dependura nas paredes dos tribunais de que a lei, por si só, não é garantia de justiça. Sobretudo se pensarmos num país que condena à prisão e - não oficialmente, nas ruas das periferias, à morte - jovens, pobres e negros. O crucifixo é lembrete silencioso de tudo que um tribunal não deve ser.

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