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Prof. Ricardo Lengruber (ricardo@lengruber.com)

O abraço que nos afasta


A repercussão do abraço de Drauzio Varella a presidiária Suzy tem muito a nos dizer sobre o Brasil e sobre o nosso tempo.

Primeiro, já é admirável que se necessite de um programa de tevê para se denunciar a desumanidade das cadeias brasileiras. Sim, não é novidade. Mas continua sendo inadmissível que o Estado brasileiro não cumpra a sua própria legislação e não garanta a dignidade humana em todo e qualquer espaço. E, claro, com isso, os desdobramentos da cena das vísceras à vista: pena e piedade, de um lado; ódio e vingança, de outro. E o que realmente importa em nada abalado ou mencionado: política pública consistente e de longo prazo para humanização da sociedade. Como já dizia o velho Dostoievski, “o grau de civilização de uma sociedade pode ser medido pela maneira como tratam seus prisioneiros.”

Em segundo lugar, e não menos curioso, é que, apesar disso, a onda inicial foi de solidariedade e comoção. Se não exagerada, ao menos artificial. Uma comoção própria dessas que a tevê produz vez por outra, seja na morte de um famoso, num acidente aéreo ou numa catástrofe natural. Uma teia (ainda que efêmera) de solidariedade se alastrou pelas redes. E, por óbvio, nesse país partido ao meio por sentimentos e paixões, surgiu também uma reação inversamente proporcional (na força e nos valores) de ódio e acusações. Suzy foi revelada como uma assassina fria e cruel. As redes, sempre elas, se inundaram de frases, memes, vídeos e textos de um lado e de outro, como se ideologia política pudesse ser debatida sob os argumentos de uma cena de um programa sensacionalista de tevê. Drauzio e Suzy viraram quase que arquétipos de polos opostos de uma guerra que não nasceu hoje no Brasil (pró e contra PT, pró e contra Bolsonaro). Os limites do embate promovido por Drauzio e Suzy são as representações dessa falsa polarização que se instalou na sociedade.

Além disso, em terceiro lugar, o abraço e seus desdobramentos revelam um falseamento da realidade. A discussão nas redes segue uma toada tal que acaba por desvirtuar a essência das coisas. A quantidade de memes lacradores com máximas religiosas demonstra essa falta de lógica. A tese de que o gesto fora demonstração de amor, de sentimento ou coisa que o valha é maquiar a realidade dos fatos. É uma cortina de fumaça para o que efetivamente ocorre. Presos LGBT abandonados por famílias e pelo Estado. Esconde a ausência de política pública. Revela o projeto de extermínio vigente na sociedade. A tese de que o abandono ocorra pela gravidade de seus crimes – ainda que compreensível por parte de um familiar – seria ilegal se impetrada pelo Estado. Mas essa desculpa não cola porque coisa semelhante não ocorre com estupradores, assassinos e torturadores cis e héteros. A questão é de gênero, portanto. E isso incomoda muito quando revelado em rede nacional. Porque expõe o preconceito e o nojo.

Um quarto elemento que me salta aos olhos é que o abraço despertou empatia. E parte dos que se sentiram assim, ao saber do crime da Suzy, se revoltaram radicalmente. É como se tivessem sentido vergonha de si mesmos em se solidarizar com um ser humano como ‘aquela trans assassina’. Em outras palavras, a Suzy presa e respondendo por seus atos (sem que o grande público soubesse de seus crimes) fora digna de empatia. E isso ocorreu porque eu e você nos identificamos em alguma medida com ela. Mas, depois que sabemos de seus crimes, ficamos atordoados em saber que uma pessoa, como eu e você, e com a qual nos identificamos e nos solidarizamos, possa cometer tais violências. Suzy e Drauzio nos revelaram, sem querer, que dentro de nós moram deuses e demônios. Empatia e vingança concomitantemente.

Por fim, as duas declarações do Dr. Drauzio iluminam sobremaneira a questão. “Há mais de 30 anos, frequento presídios, (...), não pergunto sobre o que meus pacientes possam ter feito de errado. Sigo essa conduta para que meu julgamento pessoal não me impeça de cumprir o juramento que fiz ao me tornar médico. (...). No caso da reportagem veiculada pelo Fantástico ..., não perguntei nada a respeito dos delitos cometidos pelas entrevistadas. Sou médico, não juiz.” E depois, em vídeo, se desculpa com a família da vítima de Suzy. “Posso imaginar a dor e peço desculpas para a família do menino, que foi involuntariamente envolvida no caso. Na matéria em questão, o foco era mostrar as condições em que vivem as transexuais presas.”

Na nota inicial, o médico revela o óbvio: médicos são médicos; juízes são juízes. No vídeo, de forma madura e serena, reconhece o impacto que a repercussão do caso (e não o seu gesto em si) causara à família; e se desculpa (ele próprio como que em nome de todos que tagarelaram nas redes) num gesto de grandeza e humildade. Gesto igualmente humano ao do abraço. "Lamento, mas assumo totalmente a responsabilidade pela repercussão negativa que o caso teve”, ele concluiu.

Além da sandice que as redes promovem – num debate superficial e passional – há uma instrumentalização política de tudo que ocorre. Tudo, absolutamente tudo, é pedal para o enfrentamento político-eleitoral. Que a vida é política, todo mundo sabe, mas essa sanha desenfreada de ideologização do cotidiano é muito mais estratégia eleitoral do que outra coisa. E aí, mesmo concordando que não há, tecnicamente, polos em oposição (política e ideologicamente falando), a esquerda e direita se comportam como crianças manhosas reclamando seus espaços e suas narrativas. E, pior, usando as pessoas, suas dores e seus dramas como personagens de suas aventuras.

Dr. Drauzio intuiu isso cedo e finalizou seu vídeo de desculpas com um alerta que deveria servir para todos nós (porque estamos nos comportando como fôssemos nós todos os dias candidatos a alguma coisa). “Agora, eu gostaria de dizer, claramente, e, sem nenhuma chance de voltar atrás no futuro, que nunca fui nem serei candidato a nada. As pessoas que estão explorando politicamente esse episódio, podem ficar tranquilas".

O abraço na tevê, por mais paradoxal que pareça, serviu para ainda mais afastar. E a culpa disso, intuo, está na insanidade que as redes sociais têm promovido: um círculo vicioso de superficialidade, falta de empatia, comoção inventada, passionalidade e pouca leitura.

Acho que para voltarmos a abraçar vamos ter que deixar essa maquininha aí na sua mão de lado. Urgentemente!

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