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Nada de novo sob o sol





Uma pandemia é algo excepcional? A pergunta se faz necessária porque uma pandemia acontece muito raramente; mas, também, porque uma pandemia gera situações tão extremas que favorece a ocorrência de excepcionalidades, nas pessoas e nas sociedades. É isso mesmo? Ou há somente a aparência de exceção?

O primeiro impacto é humano, seguramente. A perda de pessoas toca profundamente a civilização. Não importa em nada saber sobre os números dos homicídios, acidentes de trânsito, cardiopatias, tuberculose ou câncer. A ausência de expectativa de morte decorrentes de uma doença “nova” é que produz o sentimento excepcional. Só por isso, já vale o questionamento sobre qual é exatamente nosso sentimento. Sentimos mesmo pelas mortes ou, simplesmente, nos estranhamos que haja algo novo sobre o qual não temos conhecimento e proteção suficientes? É angústia pela morte que visita a humanidade ou é simplesmente medo da minha morte?

Essa pergunta cabe porque, por exemplo, a AIDS, considerada pandemia desde 1981, com quase 40 milhões de pessoas infectadas atualmente, causou pânico no início dos anos oitenta, mas esse sentimento foi se arrefecendo na medida em que os cuidados paliativos e preventivos foram se impondo. Ou, por exemplo ainda, no caso das mortes de trânsito (em boa medida perfeitamente evitáveis) são naturalizadas como se fenômenos naturais fossem. A sensação que se tem é que até a nossa dor e nosso pânico são seletivos. O medo do desconhecido talvez seja a mola propulsora por trás dessa seleção que parece, mas não é, aleatória.

Nesse quesito, ainda, vale registrar que o pânico, embora impulsionado pelo medo do desconhecido, é também inflamado pelo horror à equalização entre as pessoas. É claro que o vírus não escolhe um corpo em particular (rico ou pobre, branco ou preto, macho ou fêmea, por exemplo). Mas a probabilidade de os pobres serem suas vítimas preferenciais é óbvia. Condições de moradia, de saneamento, de transporte público, de alimentação e de acesso à rede de saúde são condicionantes que os torna muito mais vulneráveis que os demais. A questão, todavia, é que esses “demais” são a minoria. E essa minoria não está disposta a correr o risco de se contaminar e ter que enfrentar um sistema de saúde colapsado pela multidão dos infectados entre os pobres.

A pandemia – e nesse aspecto ela não tem nada de excepcional – apenas aprofunda às raízes a desigualdade social e o ódio de classe. Se houver alguma garantia que os leitos e respiradores estarão à salvo para os do andar de cima, os do de baixo terão “autorização” para voltar a trabalhar.

Isso parece cruel e desumano. Mas é exatamente o que ocorre. Prova disso é a condução da política econômica brasileira nesse momento. O benefício para desempregados e autônomos (de R$ 600,00) e o da suspensão ou redução dos contratos de trabalhos (nos padrões do seguro desemprego) são, além de baixos e insuficientes, mostra da lógica que os subjaz. Se há um cofre capaz de partilhar esse volume financeiro todo entre milhões de brasileiros (sem que para isso se toque nas grandes fortunas e nos bancos – os maiores do mundo), é porque há matematicamente condições reais e concretas de garantir renda mínima de cidadania para a população permanentemente. Isso seria, além de mais inteligente do ponto de vista econômico (segundo especialistas liberais contemporâneos, inclusive), muito mais elevado do ponto de vista ético.

A ausência de excepcionalidade da pandemia se revela também nesse fator financeiro e social. Dinheiro na mão dos pobres, nessa hora extrema, serve apenas para que eles, proporcionalmente os maiores consumidores, mantenham viva empresas e bancos. Quando há as sandices nas ruas (dentro dos carros) pedindo a volta ao trabalho é exatamente seguindo essa lógica. A volta da massa para o chão das fábricas, lojas e escritórios. Esse clamor tem sentido. O Brasil é um entre os três países com mais leitos de CTI no mundo. O problema é que a maior parte deles está nas redes privadas de saúde, que atendem a uma minoria consideravelmente pequena dos brasileiros.

A tese de que a pandemia nos iguala a todos é equivocada. A pandemia, infelizmente, reforça nossas desigualdades. Quando o sistema tiver compreensão e controle da situação, tudo voltará ao “normal”.  Os que mais morrem e os que mais vivem seguirão o curso normal de suas existências.

Duas observações finais: o sistema não é impessoal (tem nome e CPF); se alguém quiser desestabiliza-lo, ou ao menos faze-lo balançar, deve (se puder) ficar em casa. Com isso, as vísceras virão ainda mais à tona. E aí, talvez, alguma excepcionalidade possa ocorrer.

No fundo, parece que a sabedoria antiga ainda permanece de pé, intocada: “O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; de modo que nada há de novo debaixo do sol.” (Eclesiastes 1, 9)

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