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Um Natal vazio


Há uma expressão grega utilizada pela Teologia para expressar o processo pelo qual Deus, o Pai, “esvaziou-se” de sua posição e assumiu a condição de Filho, na pessoa de Jesus de Nazaré.

“Kenosis” é esse apequenar-se, tornar-se vazio de prerrogativas especiais, esvaziar-se a si mesmo. Em outras palavras, foi o caminho assumido por Deus com o propósito de chegar mais perto de sua Criação e se tornar como cada um de nós. Jesus, o Galileu pobre e cheio de compaixão que mudou a vida de uma multidão de pessoas ao longo da História, é um irmão nosso, carne de nossa carne, sangue de nosso sangue.

O menininho - que choramingou pela primeira vez depois de vindo à luz desde o ventre de uma jovem de Nazaré, chamada Maria, que não encontrou lugar na hospedaria dos homens e teve de se conter com a manjedoura dos animais como seu primeiro berço - é um filho da humanidade, na sua mais radical concepção. Jesus encarna o que há de mais humano entre os humanos: o desafio de viver.

Os animais vivem por uma espécie de imposição da Natureza e pela capacidade de superar uma seleção imposta pela vida. Conosco parece acontecer algo diverso: apesar de sermos como animais (no que diz respeito aos processos biológicos e evolutivos), vivemos porque transgredimos condições pré-estabelecidas e reinventamo-nos.

O Natal nada mais é que uma reinvenção de Deus. Se para os povos antigos, Deus é um soberano que demanda oferendas e obediência, dado que é dele que brota a chuva, o sol, o trabalho, a saúde, o pão e a família. Por isso a relação entre homens e Deus é sempre pactuada pelo temor. Em Jesus, essa lógica soberano-súdito vira de cabeça para baixo e se reinventa.

Alberto Caeiro assim percebeu tal movimento:

Tinha fugido do céu.

Era nosso demais para fingir

De segunda pessoa da Trindade.

No céu tudo era falso, tudo em desacordo

Com flores e árvores e pedras.

No céu tinha que estar sempre sério

O belo prólogo do Evangelho de São João inicia: “No princípio era a Palavra, e a Palavra era Deus (...) e a Palavra se fez carne e habitou entre nós!” (Jo 1,1.14). Há duas profundas reviravoltas na compreensão das coisas: Deus não é um rei, Deus é “palavra” (aquilo que dá sentido ...); Deus não se esconde sobre um trono, em lugar disso, assume o rosto de uma criança frágil e se torna um irmão nosso.

Leonardo Boff tornou compreensível esse mistério com duas pequenas, mas lapidares, colocações: “humano como fora Jesus, é porque só podia ser Deus mesmo!”, ou, ainda, “o projeto de Deus não é fazer os homens deuses, mas fazer-se, a si mesmo, Homem.”

Eis, na minha simples opinião, o que torna o Cristianismo singular. Ensinamentos morais (fazer bem, amar ao próximo, perdoar etc) e ensinamentos religiosos (amar a Deus, ser fiel a Ele, conhecer seus ensinamentos etc) são lugar-comum em qualquer caminho religioso. O que torna, todavia, o Cristianismo ímpar é a “encarnação” de Deus em Jesus de Nazaré.

O problema, contudo, surgiu com a história da Igreja: Jesus esvaziou-se de si e, paradoxalmente, encheu-se de Deus e tornou-se o Cristo. Jesus, na Igreja, deixou, século após século, de ser um irmão nosso e tornou-se, a exemplo de seus antepassados simbólicos, Juiz e Rei.

Sou pai de dois filhos. Duas pessoas infinitamente diferentes, mas incrivelmente unidas por um amor genuíno e despretensioso. Gratuito!

Damo-nos tão bem um com o outro

Na companhia de tudo

Que nunca pensamos um no outro,

Mas vivemos juntos e dois

Com um acordo íntimo

Como a mão direita e a esquerda. (A. Caeiro)

Fui presenteado pela vida com a suprema riqueza que é descobrir detalhe por detalhe quem é um ser humano. Participar, desde o primeiro instante, da vida de alguém é uma oportunidade única que a vida nos dá. Os primeiros movimentos, os olhares curiosos, as descobertas inauditas; cada uma das experiências colhidas é uma verdadeira revolução.

Mas há um desafio, eu diria, natalino, na experiência parental: o imperativo da “kenosis”. A exigência ética pelo “esvaziar-se”. Em outros termos: cuidar para que a vida germine e cresça com viço e beleza, mas garantindo-se a liberdade e a autonomia.

Tal como o Menino nascido entre os animais, nossos filhos são pessoas, desde sempre, independentes e inoculadas pela promessa da autenticidade.

Eis aí, talvez, a radical missão dada aos pais: cativar e libertar! Ainda o Caeiro ajuda muito quando escreve:

Depois fugiu para o Sol

E desceu no primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.

É uma criança bonita de riso e natural.

Limpa o nariz ao braço direito,

Chapinha nas poças de água,

Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.

Atira pedras aos burros,

Rouba a fruta dos pomares

E foge a chorar e a gritar dos cães.

(...)

A mim ensinou-me tudo.

Ensinou-me a olhar para as coisas.

Aponta-me todas as coisas que há nas flores.

Mostra-me como as pedras são engraçadas

Quando a gente as tem na mão

E olha devagar para elas.

Reconheço que escrevo sobre utopias. Mas que fazer se a vida só tem sentido onde, exatamente, não há lugar? “U-topos”, a ausência de lugar. “Não havia lugar para eles na hospedaria ...”. “Tinha fugido do céu.”

Creio ser esse um sentido bom para o Natal (que se tornou tanta coisa em tantos “lugares”): experimentar a gratuita liberdade de se esvaziar e aprender a ver melhor!

Quando eu morrer, filhinho,

Seja eu a criança, o mais pequeno.

Pega-me tu ao colo

E leva-me para dentro da tua casa.

Despe o meu ser cansado e humano

E deita-me na tua cama.

E conta-me histórias, caso eu acorde,

Para eu tornar a adormecer.

E dá-me sonhos teus para eu brincar

Até que nasça qualquer dia

Que tu sabes qual é. (A. Caeiro. Poema do Menino Jesus)

A todos/as, desejo um Natal mais “vazio”!

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