Teologia é reflexão sobre a fé. Na verdade, é a própria fé refletindo sobre si mesma. Em algum sentido, toda pessoa de fé faz teologia, na medida que pensa sobre o seu modo de crer, reflete sobre aquilo que crê e indaga sobre os desdobramentos de sua crença. A teologia, nesse sentido, é uma espécie de espírito crítico e criativo da espiritualidade humana. Mas vai além, quando consegue perceber a dimensão transcendente do cotidiano e se esforça por compreender os significados da realidade. É uma espécie de ‘rede’ através da qual captamos a realidade e a ela outorgamos sentido. Rede que parte daquilo que significa mais profundamente, aqueles aspectos da existência que, em geral, são negligenciados por outros saberes. Não é uma rede que trata disso ou daquilo, mas sobre a qual se sustenta quem pensa sobre isso ou aquilo. Não é algo ‘a respeito’, mas ‘a partir do qual’. Se a filosofia é o saber refletindo sobre si mesmo, a teologia é a fé pensando sobre si mesma. Não há, nas muitas tradições cristãs, tema que seja mais importante do que a morte de Jesus e o significado que a ela foi atribuído. No fundo, a forma como se encara a morte de Jesus determina a maneira como se vê a fé e como essa mesma fé se desdobra na vida real do dia a dia. Há uma tradição antiga que reforça a ideia do sacrifício. Jesus morreu porque havia a ‘necessidade’ disso. Em outras palavras, para o restabelecimento de uma ordem na criação, Deus entregou seu próprio filho para que redimisse os pecados do mundo todo. Seria uma espécie de substituição. O sacrifício de um redime todos os demais. Há outros caminhos, todavia, na forma de se enxergar a morte de Jesus. E não se trata de nenhuma novidade ou contorcionismo hermenêutico. É apenas uma questão de olhar os textos com mais calma e fazer um exercício de leitura que vá além do que já está dito para além deles. A morte de Jesus foi consequência de sua forma de vida. Morreu executado pelas autoridades de seu tempo. A Cruz era instrumento de tortura e de aplicação da pena capital a que os romanos submetiam aqueles que de alguma forma ameaçavam a integridade do império. Jesus morreu executado pela legislação vigente. É nesse sentido que não é apenas sua morte que tem caráter salvador. Não se trata de um ato mecânico e mágico que, por si só, salva a humanidade e perdoa seus pecados. O que salva é a vida toda de Jesus. A morte foi culminância dessa jornada. Ela simboliza a vida toda. Mas supõe essa mesma vida. Por isso, talvez, a melhor palavra para representar o significado da morte de Jesus seja “solidariedade”. Jesus se colocou no lugar de todos que morremos. Não como alguém que substitui os demais, mas como aquele que é capaz de se tornar um ao lado dos demais. A morte de Jesus é um gesto de suprema capacidade de empatia. Jesus se coloca no lugar dos tantos injustiçados desse mundo. Não é uma questão teórica, portanto; é uma opção de vida que deu preferência aos excluídos da história. É, também, martírio. Testemunho de uma vida de coerência. As tentações para abandonar seu incansável anúncio do Reino de Deus certamente existiram. Sua fidelidade ao Reino, todavia, o levou à cruz. É como se na morte a encarnação iniciada no Natal encontrasse seu cume. Jesus foi um ser humano pleno. Inclusive na morte. Aquele a quem chamamos pelo nome de Deus foi, em tudo, um como nós. Isso muda tudo.
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(*) Ricardo Lengruber é professor. Doutor pela PUC Rio, tem livros e artigos publicados nas áreas de Educação, Religião e Políticas Públicas. Foi Secretário de Educação em Nova Friburgo, presidente da ABIB e é membro da Academia Friburguense de Letras. Visite www.ricardolengruber.com
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