Genealogias eram como carteira de identidade na Antiguidade. Os judeus de depois do Exílio da Babilônia passaram a dar especial importância a essa forma de comprovar a ascendência familiar das pessoas. Era uma espécie de “pedigree”.
Obviamente, uma “árvore genealógica” é, do ponto de vista prático, impossível. A começar a contar pelos meus pais, em dez gerações acima, minha árvore teria mais de mil pessoas listadas. No caso de querer ousar vinte gerações, seriam mais de um milhão de pessoas – apenas enumerando pais e filhos (sem irmãos e outros parentes). E sem levar em conta a dinâmica de falecimentos, novos casamentos e outros arranjos familiares tão comuns na história.
Na prática, as genealogias servem para direcionar uma determinada ascendência. Escolhe-se um “sobrenome” e se empreende uma busca por ele nas gerações passadas. Faz-se uma linha reta transversalmente cortando as gerações. E, convenhamos, há famílias e famílias nessa busca nada despretensiosa.
A seguir esse raciocínio, a gente pode ser da família que quiser. Em algum ponto, vamos encontrar um ancestral desejado. Basta ter paciência e alguns documentos à mão.
Na Bíblia, há muitas genealogias. No Antigo Testamento, especialmente. Mas há uma – no Evangelho de Mateus no NT – que sempre me chamou muito à atenção. Trata-se da enumeração dos ascendentes de Jesus.
São listadas 42 gerações (que envolveriam – de casais de pais de geração e geração – mais 4 trilhões de pessoas envolvidas) e de cada uma delas um nome: o pai que gerou um filho, sucessivamente.
“Abraão gerou a Isaque; e Isaque gerou a Jacó; e Jacó gerou a Judá e a seus irmãos.” (Mt 1,2)
Pelo caminho, nomes conhecidos da História de Israel. Destaque para Davi e Abraão, por exemplo.
O que chama à atenção, todavia, são cinco interrupções na linearidade do texto. Cinco mulheres invadem a calmaria dessa genealogia só de homens e reclamam seu espaço.
É claro que uma genealogia precisa de pais e mães – mas numa sociedade machista isso não vinha ao caso. Quem escreve Mt 1 ignorou esse protocolo dos machos e salpicou cinco nomes femininos – e não quaisquer cinco.
Na genealogia de Jesus não parecem Sara, Rebeca ou Lia, mulheres dos patriarcas. Não aparecem as outras 34 opções restantes nas gerações seguintes. Aparecem apenas Tamar, Raabe, Rute, “a que fora mulher de Urias” e, por fim, sua mãe Maria.
Quem escreveu a genealogia de Jesus em Mateus – se queria garantir ao Messias algum pedigree – o fez ironizando essa ingênua pretensão de “pureza”. Jesus foi filho de gente como a gente.
A humanidade de Jesus não foi tratada de forma teológica ou doutrinária. Foram as mulheres que garantiram sua densa e profunda dimensão humana.
Vale a pena pesquisar a história dessas cinco mulheres.
Tamar passou-se por prostituta para engravidar e dar descendência a seu esposo falecido (como previa a Lei do Levirato), já que seu sogro e seus cunhados a haviam abandonado.
Raabe era prostituta na entrada de Jericó.
Rute era uma estrangeira.
E “a que fora mulher de Urias” – Betseba – foi roubada de seu casamento pelo rei Davi que, para se apropriar dela, mandou seu esposo Urias para a frente de batalha de uma guerra perdida.
E Maria, cuja coragem e resignação diante das fofocas de seus contemporâneos deram ao menino Jesus uma criação menos machista que seu tempo prometia. Além de muito mais que se poderia dizer a respeito dela.
Enfim, cada um escolhe sua genealogia. Jesus escolheu uma que o retratasse como gente. Não desviou o caminho quando encontrou o que poderia ser “problema”.
Isso se chama dignidade.