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O ópio nosso de cada dia


O ser humano é uma teia incrivelmente complexa de relações, tensões, nós e possibilidades: desde faculdades físicas e racionais até capacidades e sensibilidades de natureza emocional e espiritual. Em nós, mora uma espécie de sede implacável por algo que sequer sabemos nomear ou identificar.

O que chamamos por espiritualidade é exatamente essa abertura que o ser faz na direção do encontro e da realização. Uma busca profunda por sentido. Um grito por significado e alento. Uma explosão do eu que se sabe maior do que si mesmo. Uma viagem para fora e para dentro.

As religiões são esquemas sistematizados para a vivência das experiências espirituais. São formas instituídas que, historicamente, captaram essa demanda existencial do ser humano e organizaram o caminho a percorrer. Sob esse aspecto, as religiões dão conta de algo sem o qual a vida humana é muito mais pobre e muito mais suscetível ao ocaso.

Mas há que se ter claro, por outro lado, que religião e espiritualidade são coisas distintas. A primeira deseja ser a institucionalização da segunda; a última é a fonte que dá vida à penúltima. Se a espiritualidade humana, como fonte virgem que não se esgota, transborda os limites das famílias religiosas, a religião, por seu caráter institucional, dá densidade histórica a essa chama da personalidade humana, mas, também, corre o risco de cerceá-la e inibi-la.

Uma das mais citadas críticas à religião é atribuída ao filósofo Karl Marx. Segundo o senso comum, Marx teria impetrado críticas severas à religião e, de forma lapidar, sentenciou: “a religião é o ópio do povo”; a citação consta da Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, obra publicada em 1844.

Há, todavia, algumas observações que ajudam a compreender a crítica de Marx e, especialmente, o lugar da religião nesse cenário todo.

A comparação da religião com o ópio não é original de Marx; já tinha aparecido, por exemplo, em escritos de Kant e Feuerbach; Heinrich Heine, em 1840, no seu ensaio sobre Ludwig Börne, escreveu: “bendita seja uma religião que derrama no amargo cálice da humanidade sofredora algumas doces e soporíferas gotas de ópio espiritual, algumas gotas de amor, fé e esperança”.

O contexto da afirmação de Marx é bastante elucidativo:

“É este o fundamento da crítica irreligiosa: o homem faz a religião, a religião não faz o homem. E a religião é de fato a autoconsciência e o sentimento de si do homem, que ou não se encontrou ainda ou voltou a se perder. Mas o Homem não é um ser abstrato, acocorado fora do mundo. O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este Estado e esta sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma popular, o seu point d'honneur espiritualista, o seu entusiasmo, a sua sanção moral, o seu complemento solene, a sua base geral de consolação e de justificação. É a realização fantástica da essência humana, porque a essência humana não possui verdadeira realidade. Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião. A miséria religiosa constitui ao mesmo tempo a expressão da miséria real e o protesto contra a miséria real. A religião é o suspiro da criatura oprimida, o ânimo de um mundo sem coração e a alma de situações sem alma. A religião é o ópio do povo. A abolição da religião enquanto felicidade ilusória dos homens é a exigência da sua felicidade real. O apelo para que abandonem as ilusões a respeito da sua condição é o apelo para abandonarem uma condição que precisa de ilusões. A crítica da religião é, pois, o germe da crítica do vale de lágrimas, do qual a religião é a auréola. A crítica arrancou as flores imaginárias dos grilhões, não para que o homem os suporte sem fantasias ou consolo, mas para que lance fora os grilhões e a flor viva brote. A crítica da religião liberta o homem da ilusão, de modo que pense, atue e configure a sua realidade como homem que perdeu as ilusões e reconquistou a razão, a fim de que ele gire em torno de si mesmo e, assim, em volta do seu verdadeiro sol. A religião é apenas o sol ilusório que gira em volta do homem enquanto ele não circula em tomo de si mesmo. Consequentemente, a tarefa da história, depois que o outro mundo da verdade se desvaneceu, é estabelecer a verdade deste mundo. A tarefa inmediatada da filosofia, que está a serviço da história, é desmascarar a auto-alienação humana nas suas formas não sagradas, agora que ela foi desmascarada na sua forma sagrada. A crítica do céu transforma-se, deste modo, em crítica da terra; a crítica da religião em crítica do direito, e a crítica da teologia em crítica da política.”

Primeiro, há que se destacar o valor intrínseco que Marx e seus antecessores reconhecem. A religião como espírito de um mundo sem espírito, como bálsamo em mundo de feridas e dores. Isso ajuda a reconhecer o valor que há no culto e no rito religioso. O lugar do ópio do qual todos, de alguma forma, precisamos. Ópio que nos alenta e nos faz, momentaneamente, sublimar o estado real das coisas da vida e suas agruras.

Não vejo como mau o rito que nos tira desse mundo e nos faz, ainda que provisoriamente, experimentar aperitivos de um mundo melhor; uma realidade, na linguagem de Paulo, em que Deus é tudo em todos!

O problema nasce quando o ópio se sobrepõe e exige constante retorno aos seus desvarios. A questão surge quando o ópio se torna um fim nele mesmo e, ao invés de agir como bálsamo na ferida, vicia e aliena. Toda ferida precisa de cuidados imediatos para aliviarem sua dor; mas enfermos precisam de diagnósticos mais aprofundados e abrangentes. Mais do que o alívio da dor, é fundamental que se descubra as causas da doença.

O rito que nos tira os pés do chão e, carismaticamente, nos faz rir e chorar é bálsamo que nos ajuda a ver significado nesse mundo sem coração, especialmente para com os mais pobres dessa sociedade vil que construímos. Mas o rito que pára por aí é ópio viciante que deve, sim, ser combatido.

Nesse sentido, Marx ilumina o lugar e o valor da religião na vida humana. Questionar o céu é analisar crítica e transformadoramente a sociedade; discutir o modo de ser da religião e da teologia é favorecer uma compreensão nova sobre as regras jurídicas e políticas desse mundo nosso de cada dia.

Ópio que se preza faz, sim, sair de si e ver transfiguradamente o eu e a realidade (e isso é bom!); mas, ao mesmo tempo, faz voltar a essa realidade com o propósito de transformá-la; do contrário, não passa de droga que deve ser evitada, sob pena de se perder a grande oportunidade que temos de mudar a nós mesmos.

Não há nada de errado na religião que faz "fechar os olhos" e "levantar as mãos", desde que não permaneça sempre assim: o fundamental é que essa mesma fé nos faça "abrir os olhos"e nos incentive a "estender a mão"!

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