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Sobre a vida e o amor


A vida é um milagre surpreendente. Mesmo para agnósticos religiosos, a vida e suas estruturas se apresentam de forma incrivelmente encantadora. Cosmólogos são unânimes em mostrar o quão pitoresca é a composição desse planeta distante a que chamamos lar. O mesmo podem nos apresentar biólogos e botânicos. A vida, tal como a conhecemos, é uma exceção. A vida inteligente, segundo nos parece, é exceção entre exceções. É isso, mesmo sem ser religioso, dá pra partir do princípio que a vida é, sim, um milagre.

Milagre, no sentido bíblico, é sinal. Milagre é aquilo que aponta para a ação de Deus. Não é o extraordinário. Antes, o mais ordinário de tudo, aquilo subjaz e torna a vida possível. É aí que Deus mora: onde nada pode ser enxergado, realmente. Por isso, diz-se que Deus é invisível. Por isso, insiste-se que Deus não existe. E, curiosamente, isso se torna detalhe perante a majestade cálida da vida e sua organização.

Acredito que onde pensamos estar Deus está, na verdade, aquilo a que aprendemos a chamar pelo nome de Deus, um arremedo submisso e feito à nossa semelhança.

A vida, entendida como espaço da realização da potência de átomos e partículas subatômicas, talvez seja, ela mesma, essa engenhosa fonte originária a que denominamos Deus.

Essa discussão perde muito do seu significado, porém, se não dermos conta de pensar sobre onde a vida se realiza, ou seja, onde o invisível se torna palpável.

A vida mesma perde sentido quando se toma os meios pelos fins. Quando, por exemplo, a saúde, compreendida como a regularidade dos sistemas de funcionamento do corpo, é tomada como valor maior e mais importante que os relacionamentos e experiências que alimentamos. Mais vale um dia vivido intensa e sinceramente que mil dias gozados sob muita saúde, mas sem a densidade que somente os relacionamentos sadios promovem.

É curioso como médicos e profissionais de saúde vêm a vida sob um ângulo bem distinto daquele que preferimos privilegiar no dia a dia. Sinais vitais - temperatura, pressão, batimentos, flatos e excrementos - são valorizados incrivelmente. Aquilo que optamos por esconder e fingir que não existe é justamente o que nos dá indícios que estamos vivos.

Tendemos a valorizar o dinheiro e suas capacidades. Optamos por reduzir nossas questões a contas a serem saldadas. Preferimos fazer da vida e sua dinâmica uma espécie de mercado em que tudo está à venda e pronto para compra. Quando o dinheiro se torna um valor, ele perde sua mais promissora vantagem, que é a de intermediar relações. Quando meios se tornam fins, os fins são preteridos e a vida perde sua meta.

O milagre a que chamamos vida é uma profunda forma de relativização de tudo. O fato mesmo de as coisas existirem e estarem vivas - dada sua aparente improbabilidade - já é lição de que existir é uma dádiva.

É arrogância entender que somos centro de alguma coisa ou que algo exista em nossa função. O pálido ponto azul dependurado no oceano negro do universo é uma improvável estrutura de vida; se não bastasse isso, a concepção humana e sua inteligência são espetáculos inacreditavelmente surpreendentes.

Vista assim, a vida é que é o desequilíbrio. A morte (vista pelo ângulo de quem vive atrapalha tal dimensão) é, na verdade, o equilíbrio. Não há interações ou dependências. Há apenas cada coisa no seu lugar sem a predisposição de doar e receber mutuamente.

Achar que algo gira em torno de nós é o mesmo que negar a complexidade da vida e, pior, é ver as coisas pelo seu avesso.

Disso tudo, ficam algumas lições básicas: dinheiro é meio, fins são as relações de amorosidade e cumplicidade que construímos. Saúde é uma linha muito tênue entre o que garante a permanência da vida e o derradeiro e inexorável fim de tudo.

As pessoas estão aí como presentes. Viver é, também, ter a capacidade de conviver. De estar junto. De procurar ser agradável. De, de alguma forma, fazer-se importante para o outro.

Conviver é permitir ao outro que sustente sua fragilidade na minha fragilidade. É, ainda que implicitamente, uma permuta de desequilíbrios e, de alguma forma, uma guerra que já se começa a travar sabendo tê-la perdido. Valiosa não é a vitória, antes a batalha.

Quem muito valoriza o dinheiro, embora diligente, pode naufragar no mar bravio onde o que faz diferença não é representando por números.

Quem muito valoriza a saúde, embora responsável com a dádiva recebida, pode incorrer no equívoco medonho de economizar vida e, sem que perceba, ser furtado dela sem qualquer aviso prévio.

Quem se coloca no centro de tudo e vê o outro como oponente ou a si como protagonista corre o risco de ficar só, mesmo que rodeado de pessoas.

A vida é sinal. Sinal que não estamos aqui por acaso, e, ainda que o seja, optamos por dar algum sentido a isso tudo. E o sentido não está na quantidade de dinheiro ou na qualidade da saúde, antes e sobretudo na profundidade e sinceridade dos relacionamentos.

Por fim, não se pode esquecer de algo que ainda não fora mencionado aqui: o amor.

Se é improvável que o planeta nos de condições de vida; se é irreal que a materialmente evoluído até se tornar o que somos; se é impensável que nisso tudo ainda viceje inteligência; mas inacreditável é que se possa olhar pra alguém e saber que o que as une é mais que equilíbrio entre diferentes.

Não bastassem as evidências que a vida é em tese uma impossibilidade, ainda nos assalta a sensação de que o amor é um sacramento desse mistério maior a que chamamos vida. Ou seja, apenas um sinal. Sinal de que não nos pertencemos. Sinal de que somos dos outros.

Talvez seja por isso que a Bíblia diz que o nome de Deus é Amor.

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