A Bíblia tem histórias e ilustrações belíssimas. Muitas delas nunca aconteceram. Não porque sejam inverdades. Mas porque ocorrem sempre.
Uma delas tem a ver com a recomendação de sermos como o sal na terra. Aliás, mais que recomendação, uma afirmação. “Vocês são o sal da terra.”
A simplicidade dessa metáfora é o que a torna tão potente. O sal é tempero. Comida sem sal é intragável. Com sal demais é insuportável. Além de desaparecer na comida pronta, o sal é um parte irrisória no todo da massa.
A ação humana, individual, na história é muito pequena. Às vezes, aparentemente insignificante. Especialmente se a gente se deixar levar pelas narrativas e propagandas sobre os heróis. Mas a vida real de cada pessoa é marcada não pelo extraordinário e pelo fantástico. Mas pelo cotidiano, pela efemeridade. É no ordinário do dia a dia que a história se constrói.
Por isso, o sal é mais valioso que os temperos exóticos. Além de a gente querer sal todos os dias, era ele quem ajudava na antiguidade na preservação dos alimentos por mais tempo.
Não se trata de fazer um banquete por dia. Mas de ter sobre a mesa o arroz com feijão da dignidade. Ser sal na terra significa cooperar na humanização de um mundo que, apesar de propagandear virtudes e conquistas, tornou-se uma aldeia de egoísmo e vaidades.
Em busca de um sabor novo por dia, acaba que há gente padecendo de fome por conta dessa sanha por excentricidades.
Um sorriso na calçada, um lugar no ônibus ou um peso dividido são mais revolucionários do que se possa supor. Há muita gente por aí - eu e você, talvez - carecendo mais de afetos que de novidades.
Gente que está cansada da promessa de um tempero novo a cada dia. Gente que quer, ao mesmo tempo, temperar com discrição e preservar com cuidado o que custou para chamar de eu.
Ser sal é isso: ajudar a temperar a rotina e, ao mesmo tempo, preservar a liberdade.

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(*) Ricardo Lengruber é professor. Doutor pela PUC Rio, tem livros e artigos publicados nas áreas de Educação, Religião e Políticas Públicas. Foi Secretário de Educação em Nova Friburgo, presidente da ABIB e é membro da Academia Friburguense de Letras. Visite www.ricardolengruber.com
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