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Imprensa e tribalismo: o jeito moderno de permanecer primitivo.


É lugar comum que o ser humano seja um ser racional. E que é sua inteligência argumentativa que o torna singular. Mas é curiosa a diferença de sensação que temos diante de uma história contada ou de uma explicação dada, por exemplo. Amamos as histórias e seus enredos. Mas nos cansamos muito rapidamente com teorias e argumentos. Somos capazes de ler, ver ou ouvir uma história repetidas vezes. Às vezes, a vida inteira. O mesmo não ocorre com argumentos e teorias. A vida é percebida e orientada por narrativas. Mesmo sem perceber, é contando e ouvindo histórias que caminhamos, que direcionamos, que atribuímos sentido às coisas. Talvez por nossa herança tribal, as histórias contadas e recontadas são uma espécie de lugar seguro para nós. É como se voltássemos para o entorno da fogueira e ouvíssemos de novo os anciões contando suas peripécias. Isso ajuda na formação de nossa personalidade. Finca raízes e faz florescer valores. Talvez seja por isso que as capas de jornais de notícias trazem uma mescla de texto e imagem. Palavras e fotografias selecionadas. É como se fosse um jeito moderno de continuar contando histórias. Há - por assim dizer - um ideograma por dia; uma ideia traduzida em notícia que, por sua vez, é estampada num layout cuidadosamente editado no jornal. Textos que reforçam ou contradizem imagens. Imagens que acentuam ou desvirtuam reflexões. Enfim, uma detalhada arte de “en-formar”. Além de os textos de notícias serem escritos como histórias, as imagens reforçam a mensagem pretendida. As histórias formam imagens mentais. Lembram os livros infantis e sua riqueza de mensagens (para muito além do que simplesmente está escrito). Nossas histórias no cotidiano foram disfarçadas de notícias. São simplesmente narrativas. Outro dado que não se pode esquecer nesse cenário é o fato de que há uma ilusão de que as narrativas heroicas e míticas ficaram esquecidas no passado. E, com isso, a linguagem da ciência e do jornalismo, por exemplo, passaram a ocupar esse espaço de prestígio. Há uma confiança e uma credibilidade diferenciadas nos números e nos fatos. Melhor ainda se estiverem impressos. No fundo, os jornais passaram a ocupar aquele lugar ancestral dos relatos sobre o herói e suas jornadas. Uma análise mais cuidadosa das capas dos jornais mostra que, como ocorre com as narrativas mais elaboraras dos romancistas, dia a dia, os jornais contam uma história como se fosse novela. E vão assim forjando opiniões e consciências. E os leitores vão se envolvendo, inclusive do ponto de vista emocional. Há, claramente, relação entre os elementos da edição do jornal de um determinado dia (internamente) e, ainda, um encadeamento de notícias ao longo dos dias, construindo uma espécie de série a ser seguida. Vale a pena ler os jornais fazendo esse exercício. Tentando interpretar as palavras escolhidas para as manchetes; as imagens selecionadas para uma notícia. E tentar perceber as intencionalidades que moram por trás dessas escolhas e edições. E essa é uma chave para compreender muitos aspectos da vida contemporânea. A despeito de toda evolução científica e tecnológica e de todos os avanços educacionais e filosóficos, a vida é compreendida ainda como uma grande novela, cujos personagens interagem e em que ainda vigora a lógica do “nós x eles”, por exemplo. Coisa, aliás, subsidiária dessa mesma herança tribal tão enraizada em nós ainda. É claro que hoje os principais meios de comunicação lançaram tentáculos em outras tantas mídias para além do jornal impresso; em rádio, tv, revistas, internet, redes etc. E, com isso, mesmo que não se perceba, há uma questão central na compreensão do enredo jornalístico que pauta a vida social - o centralismo da fonte informadora. Apesar de parecer pulverizado, o sistema é centralizado. Há pulverização na difusão. E centralização na concepção. Quem pauta são sempre os mesmos. E nós acabamos sequestrados como peças nessa grande engrenagem que é difundir repetidamente as mesmas notícias. Essa combinação de fatores tem promovido, por incrível que pareça, mais acirramento no comportamento instintivo e tribal do ser humano. Estamos cada vez mais emprenhados pela lógica da disputa, da competição e do conflito. Nossos dias se traduzem nos jornais nas notícias sobre a luta pelo poder político, a concorrência econômica, os conflitos entre nações e as disputas esportivas. Nossas notícias são sempre marcadas pela guerra. E é a partir disso que forjamos nossa jeito de habitar esse mundo. Por isso, é mais do que necessário uma mídia alternativa, uma imprensa livre e um leitor corajoso. Sem romper com o círculo vicioso das notícias diárias a que somos submetidos, não avançaremos. Permaneceremos estacionados lá na tribo guerreira donde nunca conseguimos sair verdadeiramente.

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(*) Ricardo Lengruber é professor. Doutor pela PUC Rio, tem livros e artigos publicados nas áreas de Educação, Religião e Políticas Públicas. Foi Secretário de Educação em Nova Friburgo, presidente da ABIB e é membro da Academia Friburguense de Letras. Visite www.ricardolengruber.com

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