A vida é complexa demais. Engana-se quem pensa ser capaz de compreendê-la em toda sua magnitude. Por isso, os símbolos são indispensáveis. Sem a arte, sem as representações, sem a poesia seria impossível experimentar a vida plenamente. A vida é menos objetiva que se supõe.
A realidade é, alegoricamente, comparável ao espaço por onde voam os pássaros. A aparência é de vastidão e infinitude. Mas sempre há limites, mesmo quando invisíveis e fugidios. Nesse oceano sobre nossas cabeças, há pássaros que voam alto e exploram ao máximo suas potências. Há os que apenas fazem voos modestos entre os galhos, numa espécie de vizinhança cômoda que aloja e daí segurança. É há aqueles que, mesmo equipados com asas, sequer saem do chão; receiam ousar voar.
A natureza, apesar de vasta, tem seus limites e limitadores. Por isso, os símbolos funcionam como agentes de transcendência. Insatisfeitos com o cotidiano enfadonho, inventamos nossa vastidão cultural para superá-lo. A arte é seus signos são nossa carta de emancipação. Projetamo-nos para além de nós mesmos. Nos ajudam a vencer. A avançar.
Há pássaros livres e aves aprisionadas. Além das faculdades inatas de cada pássaro, há, recorrentemente, violações e transgressões da natureza dos pássaros. Aprisionar os pássaros é o símbolo maior do cerceamento da vida e de sua liberdade.
As prisões físicas são cruéis e desumanas. Mas as ideológicas são mais radicais. Atingem o âmago da existência e usurpam dela as possibilidades de superação e reinvenção. Se há uma essência no ser humano essa é a de sempre e de novo se refazer e se reconstruir. A essência é mudar permanentemente de essência, por assim dizer. Somos, mais do que o que somos, aquilo na direção do qual buscamos nos orientar. A essência não é. A essência é algo a caminho, no caminho, na caminhada. A existência - nua, crua, concreta, contraditória, pulsante - é onde mora essa tal essência.
As doutrinas - religiosas, políticas, educacionais, filosóficas - são comparáveis aos viveiros. Aprisionam. Apesar de serem úteis para proteger, multiplicar e exibir, eles delimitam o espaço em que cada pássaro pode voar. Reduzem a imensidão do céu a uns poucos metros cúbicos. Impõem fronteiras além das quais não se pode avançar. E pelas quais quem vive em outros cativeiros não pode se aproximar. Os viveiros - essas tantas doutrinas que sequer nos damos a conta de sua capacidade de nos envolver - ao mesmo tempo, nos protegem do risco de se perder na vastidão dos saberes e das opiniões, mas nos aprisionam em modelos e representações pré-definidos que bitolam o olhar e categorizar tudo segundo esquemas pré-fabricados. A mesma doutrina que nos dá identidade e posição é a que nos categoriza numa gaveta específica da realidade. É uma espécie de paradoxo ideológico.
A ideologia é, a um só tempo, trilha que orienta e fôrma que a condiciona. Dirige e enclausura.
Em geral, a compreensão que se tem da fé, da política, da economia e do direito são experimentadas a partir das doutrinas. Nascem dentro das gaiolas. Por isso, é tão urgente quanto indispensável que se assuma essa condição para que se compreenda os limites do nosso olhar sobre as coisas e para que se perceba a necessidade de romper dia a dia com essas limitações. Se são inevitáveis as doutrinas, mais ainda deveria ser a consciência de que elas padecem de crítica permanente. A ideologia que impõe crítica ao mundo segundo sua cosmovisão deve ser a mesma que exige autocrítica permanentemente.
Se é verdade que a formatação ajuda a pensar sobre as coisas (pois dá rigor, método, coesão e sentido), é igualmente verdadeiro que as fôrmas são perigosas se olhadas dogmaticamente como se fossem a própria realidade. A ciência, a religião e a política são ferramentas de interpretação da realidade e não a própria realidade. Confundir os símbolos que representam a realidade com a própria realidade é o erro que idolatra religiões, políticas e ideologias. Os símbolos servem para indicar a direção. Mas não se confundem com o destino. Apontam.
Um pássaro em cativeiro é tudo menos um pássaro de verdade. O voo oferece riscos dos quais quem vive nas gaiolas está protegido. Mas esse é o desafio da vida. Arriscar. Voar. Seguir a direção indicada pelo símbolo, mas deixá-lo para trás em benefício de se arriscar pelo caminho.
Na política e na religião isso fica bem claro. Os rituais religiosos e as doutrinas político-econômicas são norteado res, porque ajudam a saber no que crer e em que direção se posicionar. Mas são armadilhas permanentes se considerados como fim em si mesmos e não apenas como orientadores do voo.
Não nos enganemos: por melhor que seja a doutrina a que nos enquadramos, ela não passa de uma gaiola que nos aprisiona. Mesmo que seja de ouro ainda assim é uma prisão.
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