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Prof. Ricardo Lengruber (ricardo@lengruber.com)

Quem é e o que significa o Cabo Daciolo


Todos nos surpreendemos com a aparição do Cabo Daciolo no debate dos candidatos e candidata à presidência da república na quinta, dia 08 de agosto, na tv band. A supresa teve a ver com sua forma de falar, com o repertório de seu pensamento e, claro, com os muitos memes e piadas na internet como reflexo de sua fé em forma de boatos e teorias da conspiração dos tempos de fake news.

O cabo do corpo de bombeiros, Benevenuto Daciolo Fonseca dos Santos, de 42 anos, deputado federal eleito pelo PSOL do Rio (hoje no Patriota), foi pinçado à notoriedade em 2011, quando foi uma das lideranças da greve dos bombeiros no Rio de Janeiro. Na ocasião, os grevistas ocuparam o quartel-general da corporação e acamparam nas escadarias da Alerj. Daciolo chegou a ser preso por nove dias no presídio de Bangu I.

Daciolo foi eleito em 2014. Já em maio de 2015, foi desligado do PSO, depois de ter proposto uma emenda para alterar o parágrafo primeiro da Constituição Brasileira de "todo poder emana do povo" para "todo poder emana de Deus". Ele não sabe bem o que é um “estado laico”. E as vantagens que isso tem, inclusive para os professantes das mais diferentes religiões. (Ou talvez saiba, e por isso deseja limitar a legislação).

As intervenções do deputado na tribuna da Câmara ou nos vídeos que compartilha em suas redes são basicamente pregação religiosa fundamentalista. Como tem mandato, tem feito, do congresso nacional e do palanque assegurado por seu partido na disputa eleitoral nacional, espaços de multiplicação de uma visão de mundo bem específica, mas que ganha adeptos exponencialmente, por mais incrível que isso possa parecer.

Não é de hoje que religião (inclusive a evangélica) e política se imiscuem no Brasil. Com diversos matizes e interesses, há décadas representantes das igrejas evangélicas, notadamente as pentecostais, têm galgado espaços cada vez mais representativos nos poderes da república. Juízes, promotores, deputados, governadores e prefeitos têm direta ou indiretamente mesclado ações pensando no público evangélico e a partir de valores do ideário evangélico.

A cosmovisão evangélica brasileira é complexa e multifacetada - desde os progressistas mais à esquerda do espectro político até os ultraconservadores e simpatizantes de ideias que esbarram no fascismo. Mas se encontram todas num núcleo de propósitos bem definidos: evangelizar (que significa expandir a fé evangélica para o maior número de pessoas), converter (que tem a ver com criar laços de compromisso e ações de engajamento) e defender a reta doutrina (que é essa sanha por combater todo e qualquer rito ou ideologia que fuja dos fundamentos da ‘fé cristã’).

O cabo Daciolo surpreendeu, porque não era conhecido nem esperado. Mas, além disso, por sua peremptoriedade ao falar. A sensação que se tem ao ouvi-lo é que se está diante de um profeta que fala em nome da divindade. Ele não apresenta ideias: ele pontifica verdades; denuncia pecados; ameaça pecadores; profetiza cenários catastróficos.

Em determinados segmentos sociais, o cabo cumpre um papel fundamental: é uma espécie de voz crítica que fala as verdades que poucos conhecem e muito menos estão dispostos a encarar. É um combinado, cuidadosamente distanciado no tempo e na cultura, de Antônio Conselheiro, Profeta Gentileza e Enéas.

Mas há mais a se preocupar com o Cabo. Não com ele em si. Mas com o que ele representa (a palavra exata é com o que ele ‘simboliza’).

O Daciolo é a voz de muita gente que sempre foi silenciada. Fala em nome de gente muito simples que não sabe como transformar os descaminhos desse país de privilégios e privilegiados. Mas gente que se encontrou na vida quando deixou de beber, de jogar e de praticar os ‘pecados desse mundo’ e conseguiu equilibrar sua vida, suas finanças e sua família (coisa, aliás, que é o mérito das igrejas evangélicas). Essa gente humilde, mas resistente, e resiliente, o vê como um dos seus. Ele é um dos que que fala na linguagem e no imaginário do povo.

Mas o candidato Cabo Daciolo cumpre, na disputa eleitoral, um papel até então imprevisível. Ele, ao mesmo tempo, critica a esquerda ‘bolivariana’ (que soa como música para uma imensidão de brasileiros informada pelo JN), critica os governantes que aí estão por sua ineficiência (coisa que agrada a turma que é contra tudo e todos e os oportunistas que entregam os anéis para salvarem os dedos), denuncia esquemas conspiradores que querem acabar com a família e a pátria (sic) e, mais grave no atual cenário, faz o Bolsonaro parecer equilibrado e propositivo. Ele consegue o impossível: colocar o Bolsonaro realmente no páreo.

Daciolo não vai ganhar a eleição. Talvez sequer se reeleja deputado. Mas representa uma cosmovisão. Maior do que ele pessoalmente, é porta voz de uma multidão de silenciados. Ele é o único que fala na língua do brasileiro real que pega o trem as cinco da manhã e só volta a casa já à noite pra dormir e recomeçar cansado e desesperançado.

O Brasil, num horizonte próximo, será governado por essa mundivisão. As duas ou três próximas gerações serão comandadas por essa forma evangélica de enxergar a realidade. Será uma versão nova dos populismos de sempre. Um combinado de aspirações populares legítimas (mas filtradas pela conveniência eleitoral) e oportunismos eleitorais (temperados pelo desejo sincero do cidadão).

A catástrofe, porém, é que isso não significa que o país avançará. Não haverá, para ficar no âmbito do vocabulário do Evangelho e seus valores, espaço para o perdão (o país será mais carcerário e liberará mais armas); não existirá inclusão (o país avançará nas agendas avessas a direitos humanos básicos) e não haverá a coragem profética do evangelho de Jesus (que expulsava agiotas e denunciava governantes ímpios).

O cabo Daciolo parece um representante do evangelho. Mas é, na verdade, um capítulo à mais na caricaturas desse país de engodos e oportunistas. Na melhor das hipóteses, um tipo de opção que perde eleição, mas estende tapete para os barões da velha política.

Triste país esse que faz do evangelho trampolim para usurpadores da fé sincera e ingênua do povo simples. E que só garante mais do mesmo. Sempre.

- Deus (todos eles), tenha(m) piedade de nós.

__________

(*) Ricardo Lengruber é professor. Doutor pela PUC Rio, tem livros e artigos publicados nas áreas de Educação, Religião e Políticas Públicas. Foi Secretário de Educação em Nova Friburgo, presidente da ABIB e é membro da Academia Friburguense de Letras. Visite www.ricardolengruber.com

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