Qualquer cidadão preocupado com os destinos de sua sociedade sabe que “combate à corrupção” e “combate aos privilégios”, na política e no judiciário, são temas relevantes, urgentes e necessários. Sabe que o Brasil é eivado de experiências de beneficiamento pessoal por conta dos cofres públicos. Não apenas financeiramente, mas também sob a perspectiva moral e ideológica. Mas há que se ponderar sobre a que interesses essa onda de “moralidade” atende. Há que se pensar sobre quem está, no atual cenário, ganhando com a criminalização da política e com o desencantamento da justiça? Há que se presumir, por óbvio, que não sejam nem políticos, nem juízes; muito menos “o povo” é efetivamente quem ganha com o achincalhamento público das pessoas e das instituições. Há que se desconfiar de campanhas de desmoralização tão bem orquestradas de uma hora para outra. Há que se refletir sobre o porquê de o herói de ontem ser o vilão de hoje. De mesma forma, há uma indignação à solta por aí; uma onda de protestos (pelo menos no conforto das redes sociais) com a violência no país (no Rio, em particular). E com alguma razão, inclusive. O Estado está inoperante. Mas há que se questionar. O Brasil exterminou milhões de indígenas, massacrou até o limite da desonra multidões de pessoas negras escravizadas, coibiu sua revoltas populares com chumbo e sangue, resolveu seus embates políticos com ditaduras violentas, e é a terra em que são assassinadas 60 mil pessoas (na maioria negras e pobres) por ano. Não dá para dizer que sejamos um exemplo planetário de cordialidade. Aquele adágio de que somos “um povo ordeiro” não passa de engodo. Violência e intolerância sempre estiveram por aqui. Isso não justifica a violência nas ruas. Mas ajuda a entender suas raízes e a desconfiar do porquê de somente agora haver tanto alarde sobre uma violência que nos assola há séculos. E, infelizmente, na mentalidade média, a solução passa por mais violência e mais repressão. A tendência, com isso, é só piorar o que já parece insustentável. Talvez essas duas questões - combate à corrupção e a sensação potencializada de insegurança - têm a ver com interesses maiores que não são exatamente as manchetes de jornal. Interesses econômicos tais que tornam políticos, mídia, juízes e promotores apenas operadores a serviço de si. Operadores que, quando esses interesses são ameaçados, são jurídica ou moralmente descartados. E pior: nós, ingenuamente, fazemos coro, sob o mantra de que se está moralizando o país. É claro que corrupção nas contas públicas, que as benesses do judiciário, e que a violência do tráfico de drogas são absurdos e precisam de soluções participadas por toda a sociedade. Há no país a necessidade de uma nova pactuação social. Mas é preciso considerar que há corrupções, privilégios e violências bem maiores e bem mais nocivos. E que sequer são tocados em nossos espasmos de moralidade. Há que se pensar em setores estratégicos na economia mundial (energia, bens duráveis, tecnologia, etc) e no quanto as grandes (e poucas) corporações multinacionais estão interessadas em sua captura no país (o caso de pré-sal é emblemático). E no quanto os operadores de base dos países (executivo, legislativo, judiciário e mídia) estão atendendo a esses interesses. Não é só uma questão ideológica. Por mais que haja visões de mundo distintas (e conflitantes) entre si. E por mais que isso direcione a forma de agir dos grupos humanos, o fato é que a polarização política apenas anuvia a visão das coisas e desloca a discussão para focos que nem de perto ameaçam esses interesses. No fundo, nossas discussões ideológicas (por mais cabíveis que sejam) não passam de uma peça necessária no esquema de desmonte do pouco que o país ainda tem.
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(*) Ricardo Lengruber é professor. Doutor pela PUC Rio, tem livros e artigos publicados nas áreas de Educação, Religião e Políticas Públicas. Foi Secretário de Educação em Nova Friburgo, presidente da ABIB e é membro da Academia Friburguense de Letras. Visite www.ricardolengruber.com
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