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BOLSONARO SOMOS NÓS


Artigo publicado em Carta Capital

O jogo democrático supõe divergências e convergências. E o ideal é que isso ocorra com a máximo de alternância possível. Infelizmente, o Brasil tropeça sistematicamente nessa caminhada. Nossa república é uma colcha de retalhos ameaçada de ter sua teia rompida a todo tempo. Ultimamente, mais do que nunca.

A emergência da candidatura (com viabilidade eleitoral) de Bolsonaro é o retrato e a agudização desse esgarçamento. Num cenário de crise (e de potencialização da crise pela propaganda travestida de notícia), o tipo de discurso que ele apresenta tem caído como luva para uma fatia imensa da sociedade. Mesmo quem nunca acompanhou a trajetória política e parlamentar do deputado tem enxergado nele uma ‘alternativa’, uma ‘necessidade’.

O discurso, ao contrário do que pensam alguns, não é ‘extremista’. Os extremismos, em geral, estão nas pontas do espectro político e dependem de muito esforço para convencer. Extremistas são minorias. O posicionamento de Bolsonaro é cuidadosamente calibrado pela receptividade e pela aglutinação. A cada sentença proferida (tida como politicamente incorreta), medem-se as reações positivas e negativas. Há oposição e revolta, sim. Mas há adesão e aplauso também. E, com isso, o círculo se retroalimenta permanentemente. Coisa semelhante ocorreu na eleição do Trump nos EUA. Não nos iludamos: Bolsonaro não é o autor do que pensa; ele é porta-voz de uma multidão. Nele, segmentos imensos da sociedade brasileira se veem representados. E, é claro, uma legião de aproveitadores políticos pegam carona na onda eleitoral.

E não adianta de nada criticar esse repertório ou desqualificar seus emissários. A questão não é pessoal; é social (mais que isso: é civilizatória). Questões urgentes da contemporaneidade são o alvo predileto. Mulheres, negros, homossexuais, pobres e imigrantes (apesar das profundas e sérias distinções que há em suas demandas) se tornaram vitrine do embate.

Quando questões ligadas aos direitos humanos, tolerância, respeito ao diferente e inclusão são debatidas mais pela paixão do que pela razão é porque há muita desinformação e, mais do que isso, muita violação sistemática e institucionalizada dos direitos fundamentais. A crítica ao sistema se tornou crítica às vítimas do sistema, por mais absurdo que isso possa parecer.

A confusão é tão profunda e os absurdos tão eloquentes que, por exemplo, a crise macroeconômica é vista como consequência das políticas de renda mínima; os problemas históricos da educação são tidos como resultado da política de cotas; a violência generalizada nas ruas das cidades brasileiras é percebida como resultante das políticas de direitos humanos. As consequências são confundidas como causas. A ideia de 'ordem' passa a ser sinônimo de restrição de direitos e silenciamento dos clamores dos excluídos.

Quando o Bolsonaro fala o que fala sobre mulheres, sobre armas, sobre homossexuais e sobre os negros, ele é uma caixa de ressonância da sociedade brasileira; replica valores que ficaram camuflados nas piadas, nas mesas e nos salões (de todos os segmentos da sociedade), mas que ganharam a força e a potência das redes na internet. Perderam a vergonha e ganharam legitimidade nas ações de um candidato à presidência.

O coroamento dessa absurda situação é o elogio à tortura e as homenagens aos torturadores. Qualquer outra questão perde alguma densidade de sua relevância diante da repugnante propaganda positiva de um traço tão nefasto de nossa sociedade e de uma página tão cruel de nossa história. Negar que a ditadura tenha ocorrido no país não é apenas desinformação ou embate teórico sobre historiografia - é má fé mesmo.

E tão ou mais grave que isso é a adesão e apoio de setores expressivos das igrejas cristãs a essa agenda de retrocessos e violações. Apoiar uma candidatura que abertamente elogia a tortura é, para além de um contrassenso ético e espiritual, crime mesmo. Crime contra a própria humanidade.

Pela perspectiva da cidadania, espera-se separação entre estado e religião exatamente para que interesses particulares dessa ou daquela família religiosa não se sobreponham aos interesses e direitos da maioria; mas que os valores da fé sejam fomentadores da paz na sociedade. Pela perspectiva da fé cristã, por outro lado, o que se espera das instituições e seus líderes é, no mínimo, coerência com o Evangelho de Jesus de Nazaré, cuja vida e morte foram radicalmente comprometidas com o amor pelo ser humano e com o enfrentamento de toda e qualquer força que produza a injustiça, a violência e a morte.

Cristãos são ciosos de valores familiares, por exemplo. Por isso, muitos segmentos se posicionam contrariamente ao aborto também. O que é perfeitamente compreensível e aceitável. E por isso é absolutamente inaceitável que esses mesmos cristãos apoiem um candidato que homenageia um torturador cujo método incluía trazer para a sala de ‘interrogatórios’ os filhos das mães torturadas. Isso é sadismo.

Ser cristão supõe a imitação de Cristo e isso não é mero exercício retórico ou malabarismo doutrinário e atitudinal. Demanda compromisso real com a denúncia do mal em todas as suas manifestações. O apoio a Bolsonaro é como que negar a própria fé.

A candidatura do Bolsonaro não apenas é um problema em si. Mas um sinal dos tempos. Sinal de que não avançamos como sociedade - especialmente no que tange ao respeito e à defesa da humanidade. Sinal de que, mesmo comungando maciçamente de uma fé religiosa ancorada no amor e no perdão, não conseguimos romper com o ciclo de violência que mora dentro e fora de nós.

Bolsonaro não é o culpado por isso tudo. É apenas o porta-voz de quem somos, infelizmente.

(*) Ricardo Lengruber é professor. Doutor pela PUC Rio, tem livros e artigos publicados nas áreas de Educação, Religião e Políticas Públicas. Foi Secretário de Educação em Nova Friburgo, presidente da ABIB e é membro da Academia Friburguense de Letras. Visite www.ricardolengruber.com

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