Não há dúvidas que a Bíblia está entre os principais livros da humanidade. Aliás, suas histórias estão entre as narrativas que mais influenciaram (e ainda influenciam) a história do Ocidente.
Mas há muita confusão. Há muitas formas equivocadas de ler e interpretar a Bíblia. E isso tem gerado muitos problemas. Aliás, há gente utilizando a Bíblia para fins completamente estranhos a ela mesma. E gente manipulando outros por meia da Bíblia.
Bíblia é uma palavra no plural. Livros. Biblioteca. Conjunto de textos. De épocas e locais distintos. Bíblia é pluralidade, portanto.
Lê-la é experiência de devoção, sim. Mas vai além disso. É um exercício de despojamento. Há mais incertezas e dúvidas do que portos seguros. Sua inspiração reside, em algum sentido, em sua abertura.
Os textos são de mais de dois milênios atrás. Os originais autográficos não existem mais. Na melhor das hipóteses, o que temos são cópias de cópias de cópias. E, além disso, cópias com razoáveis variantes entre si. Umas, sem relevância. Outras, com considerável diferença que interferem nos significados.
O trabalho do exegeta – do pesquisador e do tradutor – debruça-se exatamente sobre isso. Escolher um texto; localizá-lo no tempo e no espaço. Pesquisar suas palavras. Entender seu gênero. Percorrer suas tradições. Perseguir sua redação. Compreender seu estado atual. Perguntar sobre seus autores/as.
Ao teólogo, cabe atualizá-lo. Dizer sobre sua relevância hoje. Fazê-lo comunicar. Torná-lo, efetivamente, Palavra. Teólogos vivem do desafio de compreender e conviver diante do abismo. Experimentam cotidianamente o chamado de quem se sabe ignorante, mas corajoso e determinado.
Fico sempre me perguntando sobre o valor de um texto que sabemos que é uma coletânea de outros que o antecederam, sequer sabemos seus autores, de longe conhecemos sobre sua procedência geográfica e menos ainda entendemos sobre como fora lido e compreendido em seu espaço de origem.
Esse tipo de texto só pode ser compreendido se sob a lógica da inspiração.
E isso não tem nada a ver com mágica. Isso é pura capacidade de lidar com a dúvida, com a instabilidade, com a mudança. Inspiração é, por assim dizer, palavra no plural.
Há, pelo menos, duas grandes perspectivas na leitura da Bíblia.
A leitura sincrônica observa o texto em seu contexto literário. Analisa o texto como inteireza e interpreta-o em conexão permanente e harmônica com seu universo. É a análise da Bíblia como obra literária. Ler o texto que chegou para nós hoje, do jeito que está.
A leitura diacrônica pesquisa a história da composição do texto. Investiga sua trajetória oral, tradicional e escrita até chegar a ter a forma que hoje o lemos.
Sincronia e diacronia são perspectivas, em alguma medida, complementares.
Agora, o problema é quando ocorre anacronismo. Aí, já era. O texto dirá tudo que se quiser. Haverá toda sorte de intenção colocada no texto. É uma espécie de tortura para fazer o texto dizer o que desejamos que ele diga. E salve-se quem puder.
Por isso, o mais importante na leitura da Bíblia é o que antecede e que inspira a Bíblia. Ou seja, a Vida. É a vida que deve orientar a leitura. É a vida que deve ser o critério maior para compreender os textos e suas mensagens.
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(*) Ricardo Lengruber é professor. Doutor pela PUC Rio, tem livros e artigos publicados nas áreas de Educação, Religião e Políticas Públicas. Foi Secretário de Educação em Nova Friburgo, presidente da ABIB e é membro da Academia Friburguense de Letras. Visite www.ricardolengruber.com
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