A gente vive a vida numa tensão permanente entre independência e pertencimento. Não que haja contradição nisso. Na verdade, o que há é uma constante busca por pertencimento - no sentido de que a gente está sempre a procura de identidades e reciprocidades. E está sempre também em busca de um lugar interior para chamar de eu. O problema aparece quando se vive a dimensão do pertencimento por oportunismo. Quando se vive num grupo mais por conta da conveniência e não necessariamente pela comunhão de princípios e ideias. Ou aparece quando se vive uma interioridade tão excludente que corrompe a identidade e fortalece o egoísmo. Cada pessoa é um universo próprio e, ao mesmo tempo, habitante comum de um universo alheio. Somos, por assim dizer, uma tensão de singularidade e pluralidade. O curioso nessa mescla é que o que nos dá condições de vida em comunidade é a singularidade e o que nos garante essa mesma singularidade é a abertura para a diversidade. É mais ou menos assim: habitamos um mundo de milhões e somos apenas mais um nesse emaranhado. O todo, em algum sentido, anula singularidades e exige adesão à totalidade. Por outro lado, porém, para habitar realmente esse universo de pasteurizações é indispensável que cultivemos interioridade e personalidade. É um jogo interessante esse: vida interior e existência exterior. Somos únicos, sim, mas isso só é possível porque estamos mergulhador na multidão. Singularidade é diferente de solidão. Não somos um porque estamos sós, mas porque nos distinguimos na riqueza dessa multidão. E, por seu turno, a existência social só é bem sucedida quando a gente consegue romper com os discursos que exigem total e irrestrita adesão (que inviabiliza a individualidade) e quando nos lançamos sem medo de sermos tragados pelo oceano das diversidades (exatamente porque cultivamos a identidade). A travessia é sobre uma corda bamba sim - mas o abismo é muito instigante. E por isso a gente segue, apesar do medo. O medo é um sentimento total. Com medo, é difícil perceber a realidade de modo equilibrado. É uma espécie de paralisia. E, em geral, o que se realiza durante os momentos de medo são mais re-ações que ações propriamente ditas. Sentimos medo por causa de alguma ameaça que se nos apresenta. Nesse sentido, o medo é benigno: ajuda a se protejer e, no extremo, a enfrentar. A natureza humana prece ter incorporado o medo como um componente de autodefesa e garantia da integridade. Por isso, como sensação, o medo é passageiro. Ou, pelo menos, deveria ser passageiro. Os problemas surgem quando o medo se torna permanente e sem uma razão de ser objetiva. Quando o medo deixa de ser reação e passa a ser existencial é uma porta aberta para as mais tristes e anuladoras psicopatias. Tem a ver com depressão, por exemplo. E com tudo de desafiador que exige esse tipo de experiência que, convenhamos, todos estamos sujeitos. Ou quando o medo se torna instrumento de opressão de uns sobre outros. Quando o medo passa a ser ferramenta de governo, de autoridade, de comando, ou de qualquer outra forma de superioridade que negue ou usurpe o lugar do outro. Quando o medo não é reação. Mas ação de quem quer pisar. Isso ocorre nas relações internacionais. E nos diálogos de quem compartilha o mesmo teto. Talvez seja por isso que, de tempos em tempos, o “sistema” aposte no medo. Mais que isso: invista. Nada melhor para um sistema de injustiças e desigualdades que uma onda de medo generalizado, que inviabilize a ação criativa dos indivíduos e os estimule apenas a reagir a estímulos cuidadosamente preestabelecidos. Reações que são capazes de eleger presidentes. O medo é imperial. Seja no seu sentido pessoal e legítimo de quem precisa se proteger de algo e investe todas as suas energias nessa direção. Seja na diabólica estratégia de pisar nos sonhos de quem quer construir um mundo melhor. Há alguns desafios colocados todos os dias diante de nós: viver a singularidade na pluralidade, experimentar autonomia no pertencimento e, mais importante, respeitar e superar o medo.
__________ (*) Ricardo Lengruber é professor. Doutor pela PUC Rio, tem livros e artigos publicados nas áreas de Educação, Religião e Políticas Públicas. Foi Secretário de Educação em Nova Friburgo, presidente da ABIB e é membro da Academia Friburguense de Letras. Visite www.ricardolengruber.com