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A greve dos caminhoneiros


O cenário desses dias está, ao mesmo tempo, confuso e caótico. Além da confusão da falta de combustíveis e de itens importantes, convenhamos que há um caos de ideias: ninguém está entendendo muito bem o que está acontecendo.

Outra coisa: o apoio aos caminhoneiros é grande. Esse é um ponto importante. É raro também. As coisas ficaram tão ruins no país que mesmo gente sem combustível ou comida aceita a privação porque vê, no movimento grevista, uma chance de mudar as coisas. E é claro que muitos oportunistas políticos vão embarcar nesse discurso também. A extrema direita, inclusive, tem disputado a simpatia do movimento. Há discursos de intervenção militar, por exemplo, bem inflamados. Isso é grave.

A pauta de reivindicação para diminuição de impostos, além de legítima, é necessária. O Brasil tem uma carga tributária alta e injusta. Tributa mais os que têm menos. E devolve menos ainda para esses mesmos. Se a gente pensar na situação do caminhoneiro então isso fica bem claro. É uma categoria totalmente precarizada. E com condições de trabalho absolutamente indignas. Por isso, qualquer reflexão que relativize mobilizações para redução de impostos é difícil. Mas respeitosamente, é preciso fazê-las.

E, por isso mesmo também, é que essas pautas são as preferidas quando se quer convencer multidões a acreditar em determinado discurso. É preciso estar atento porque há muita cortina de fumaça nessa história.

É preciso juntar os pontos soltos e tentar entender as coisas mais amplamente.

— É preciso considerar que o setor de transportes é muito heterogêneo. Há muitos autônomos. E há muitas empresas. Há em curso, de um lado, uma greve dos caminhoneiros autônomos, e, de outro, aproveitando-se do movimento, um locaute das empresas (ou seja, a interrupção do fornecimento de mercadorias propositadamente). Parece que o governo negociou somente com as empresas, mas não com os trabalhadores.

— É importante perceber que o desabastecimento de combustível (também muito concentrado em poucas mãos) ocorreu em tempo recorde; o que mostra que houve planejamento nisso tudo.

— É estranho que a grande mídia e setores patronais estão aplaudindo e incentivando mesmo o movimento; e estranho também que não haja explicitamente críticas ao atual governo.

— Não se pode esquecer também que o próprio governo está de mal a pior e que não tem muito o que perder eleitoralmente. Esses cenários são complicados. Governos mal avaliados são capazes de entregar os anéis para salvar os dedos. Como se sabe que há compromissos firmados, esse caos pode ser justificativa para decisões que em outros contextos o povo não aceitaria.

E diante disso, é que há que se perguntar:

a) se a luta é mesmo por mesmo apenas por menos impostos (o que é totalmente legítimo) ou se é saudade do tempo de lucros mais expressivos em que havia regulação estatal dos preços do petróleo (coisa aliás que esses mesmos atores tanto criticavam no passado recente); a política de preços da Petrobras, hoje, serve apenas a interesses de acionistas e quem paga a conta somos nós. E mais: apenas reduzir impostos dos combustíveis tira recursos da previdência, por exemplo. Ganham as grandes cooperações e perde o trabalhador. A saída é remodelar essa política de preços. A Petrobrás é do povo brasileiro.

b) se perguntar também se não há um uso desse movimento legítimo como infelizmente mais um capítulo dos sucessivos esforços de desmonte da maior empresa pública brasileira para convencer ainda mais a população de sua total privatização; e

c) se questionar, por fim, se não há instrumentalização da greve como uma espécie de salvo conduto para alguma artimanha política-eleitoral com vistas a anulação de eleições (ou coisa parecido) para dar sobrevida a quem está no palácio.

Sinceramente, acho que é tudo isso junto e misturado:

  • reclame por mais lucros,

  • entrega do patrimônio nacional

  • e, de quebra, uma segunda temporada da manobra política que foi plantada no país desde as manifestações de 2013 (coincidentemente deflagrada por causa de questões do setor de transportes).

Por tudo isso, há que se preocupar com esse caos que parece ter sido cuidadosamente orquestrado.

De novo - como sempre ocorre no país - movimentos legítimos são usados pelo sistema para prejudicar ainda mais exatamente quem luta por seus direitos.

Essa turma não joga para perder.

__________

(*) Ricardo Lengruber é professor. Doutor pela PUC Rio, tem livros e artigos publicados nas áreas de Educação, Religião e Políticas Públicas. Foi Secretário de Educação em Nova Friburgo, presidente da ABIB e é membro da Academia Friburguense de Letras. Visite www.ricardolengruber.com

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