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Prof. Ricardo Lengruber (ricardo@lengruber.com)

Democracia, Inteligência e Humanismo


Reflexão sobre a leitura de CLEMENTE, Isabel; CARVALHO, Ilona Szabó de. Drogas: histórias que não te contaram. Zahar Editora, 2017.

Li com curiosidade, muito prazer e algum incômodo o livro de Isabel Clemente e Ilona Szabó, “Drogas: as histórias que não te contaram”. A leitura, além de esclarecedora, provoca inquietação. Da forma como as coisas estão, elas não podem permanecer. Estamos à beira de um abismo. Talvez já estejamos em queda livre.

“As drogas já destruíram muitas vidas, mas as políticas equivocadas já destruíram muitas mais.” Kofi Annan (ex-secretário geral das Nações Unidas e membro da Comissão Global de Política sobre Drogas).

Segurança pública não é exatamente uma ciência. É apenas uma forma de interação com um problema bem típico das sociedades urbanas onde o conflito social emerge por conta da escassez de um lado e a possibilidade de acumulação de outro. O termo “segurança”, aliás, já ganhou diversos sobrenomes, cada qual sempre sintonizado com a experiência histórica do momento. Por aqui já foi “segurança nacional” (regime militar) e “segurança cidadã” (governo Lula), para ficarmos apenas em dois exemplos mais ou menos recentes. Enfim, o conteúdo de uma prática sobre “segurança” é sempre algo essencialmente político, que tem a ver com ideologias e interesses muito bem demarcados. A contribuição do especialista deve fugir do objetivo de criar neutralidade. Segurança, numa perspectiva honesta e comprometida, é segurança dos direitos.

O cenário brasileiro na atualidade é grave. Há diante de nós a busca por mecanismos de superação que sejam, ao mesmo tempo, conciliatórios (porque carecemos de experiências seguras nessa travessia) e revolucionários (porque precisamos de coragem para uma ruptura radical).

O desafio que, como sociedade, temos diante de nós passa necessariamente pela superação da ideia de culpa (bodes expiatórios) e salvação (salvadores da pátria). A história exige a construção de um projeto minimamente compartilhado que nos identifique como "sociedade". Talvez essa seja a agenda que se nos impõe: que Brasil queremos construir?

Essa empreitada exige a superação de três chagas que carregamos historicamente em nossa conformação social.

1) Em primeiro lugar, enfrentar o fato de que o Brasil ainda patina nas relações de vantagem e corrupção. Nossa relação com o Estado é predatória e dilapidadora. A lógica que prevalece é a do benefício privado em detrimento do direito da coletividade. Há uma profunda confusão entre público e privado no país. O combate à corrupção precisa ser permanente, inteligente e sem seletividade. A questão não é exclusivamente jurídica ou policial – trata-se de um desafio ético. E é por isso que investimentos em Educação estão na ordem do dia: sem isso não haverá qualquer perspectiva de mudança efetiva.

2) Em segundo lugar, há a urgente necessidade de ruptura com hipocrisias e sofismas. O Brasil não tem nada de cordial. Reina por aqui, infelizmente, a cultura de uma violência generalizada. Como escreveu Ilona Szabó: "... somos o campeão, o número um, em violência homicida. Uma em cada dez pessoas mortas ao redor do mundo é brasileira. Isso resulta em mais de 56 mil pessoas morrendo violentamente a cada ano. A maioria delas são jovens garotos negros, mortos a tiro. O Brasil também é um dos maiores consumidores de drogas do mundo, e a 'guerra às drogas' tem sido especialmente dolorosa aqui. Cerca de 50% dos homicídios nas ruas brasileiras são relacionados a essa guerra. O mesmo vale para 25% dos presos”. Ou assumimos que a política antidrogas vigente fracassou ou nos afundaremos ainda mais numa guerra que só tem vítimas.

3) Por fim, mas não menos importante, enfrentar as imensas e intransponíveis desigualdades socioeconômicas. O Brasil sempre foi marcado pelo abismo que separa pobres e ricos. Abismo que inviabiliza qualquer mobilidade social efetiva. Abismo que torna ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres. Se na década de 1960, o Celso Furtado alertava para o fato de que 10% da população acumulava 45% da riqueza, hoje apenas 6 famílias acumulam o equivalente à metade da população brasileira. Esse definitivamente é nosso maior e mais grave problema. É herança ainda do processo de escravização de pessoas da qual não conseguimos efetivamente nos emancipar. E não nos enganemos – essa terceira questão (o abismo de desigualdades) é, ao mesmo tempo, causa e consequência das duas anteriores (corrupção e violência).

Nesse esforço, três premissas são inegociáveis:

1) Democracia como princípio. Toda e qualquer transformação, para ser legítima, precisa partir de ampla discussão e efetiva participação. Além do voto de dois em dois anos, a participação concreta na vida comunitária. Há novas tecnologias que podem potencializar isso tudo.

2) Inteligência como requisito. Criatividade, inventividade e coragem. Fórmulas antigas que têm se mostrado ultrapassadas precisam ser superadas. Política é, em algum sentido, tecnologia. Uma espécie de habilidade para gerir o corpo social. Nesse sentido, como qualquer tecnologia, pode e deve ser atualizada.

3) Humanismo como ponto de partida e horizonte de chegada. O ser humano e seus direitos como valor inalienável de toda ação. O Estado, a Lei e as instituições existem para garantir qualidade de vida e igualdade de oportunidades. Qualquer ação que não pressuponha respeito pelo indivíduo (todo e qualquer indivíduo) e pela coletividade (em toda sua pluralidade) precisa ser abandonada.

Tudo isso exige uma profunda revisão de conceitos e práticas. É a máxima do Tolstoi: "Se queres ser universal começa por pintar a tua aldeia".

Nisso tudo: coragem. Coragem para ousar. Coragem para superar o medo. Afinal, alerta o Mia Couto: "há quem tenha medo que o medo acabe."

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