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Sobre falar e fazer


A linguagem é uma extraordinária forma de dar sentido às coisas e, ao mesmo tempo, fazer com que esse sentido seja compartilhado entre os indivíduos. É por meio da linguagem que apreendemos a realidade e a ela atribuímos valor.

A mesma linguagem que concede significado e importância é instrumento para a invenção criativa. É por meio da mesma linguagem que somos capazes de criar realidades distintas e habitar mundos imaginários.

Há, nisso tudo, uma beleza profunda, pois a realidade precisa ser codificada e decodificada constantemente, para que faça sentido e tenha valor para as pessoas. Em certo sentido, é nisso que se resume a arte. “A arte existe porque a vida não basta” (Ferreira Gullar).

Mas – como tudo que é resultado da ação humana – há sempre que se ter em conta parâmetros para orientar e salvaguardar os limites daquilo que se diz ou escreve e daquilo que se fazer. Da mesma forma que o “fazer” deve estar submetido aos princípios do bem e da paz, o “falar” e o “escrever” devem, igualmente, se quedar à lógica da criação, da realização e da verdade. A isso se dá o nome de Ética.

A palavra que constrói é a mesma que destrói. A linguagem que é capaz de levantar é a mesma responsável por abater. Sem ética, a palavra se torna instrumento volúvel e perigoso. É como arma carregada em mão de louco!

Ética – mais do que o conjunto de valores que regem uma sociedade – é a forma concreta como se age e como se fala. Ético é o sujeto que age por vontade própria, com respeito à alteridade, sem esquivar-se da responsabilidade e, acima de tudo, age por liberdade.

Sujeito porque assume-se como protagonista da ação ou da omissão; sujeito que age por vontade própria porque reconhece-se como autor dos seus atos; com respeito à alteridade, sem esquivar-se da responsabilidade, porque entende o lugar do outro e não deixa de responder sempre por suas atitudes; finalmente, ético porque age com liberdade, ou seja, porque, mais do que autor de seus atos, não se permite alienar por nada nem por niguém: é, verdadeiramente, livre.

Quando falta ética, sobra desrespeito a si mesmo (por se violar sempre a vontade e a liberdade) e aos semelhantes (porque se compromete o lugar do outro); transborda irresponsabilidade.

A sociedade brasileira tem passado por uma remodelação visível em seus mecanismos de organização político-social e de prestação dos serviços (públicos e privados), bem como na forma de controle e fiscalização deles. Parece coisa do passado a arbitrariedade de patrões e governantes. O estado (entendido como “coisa pública”) tem adquirido força e os mecanismos sociais e jurídicos têm alargado seu poder de atuação, garantindo direitos e deveres.

O que não mudou na proporção desejada pela sociedade é forma de fazer “política”. Há, ainda, em pleno século XXI, o ranço da política coronelista. Da política vista como carreira pessoal em vez de espaço para prestação de serviço à população.

Ainda resiste a política como exercício do poder; da política como meio de ascensão social e econômica; da política como substitutivo do trabalho; da política como realização do indivíduo.

Nisso tudo – e pelo exposto acima – vê-se com clareza que as armas preferenciais dessa política rasteira é a linguagem manipulada para criação de inverdades e a falta de ética por absoluto desrespeito ao coletivo.

Nossa democracia ainda esconde muitas injustiças. Uma delas – não necessariamente a pior – é a falta de representatividade dos eleitos. A proporção dos votos é muito reduzida se comparada à totalidade da população do colégio eleitoral em questão. Isso fomenta a falta de fiscalização popular. Favorece a falta de responsabilidade eleitoral.

Pior ainda é a rejeição que as classes políticas sofrem. A população, em sua maioria, ainda condena a pessoa pelo simples fato de estar nessa ou naquela função política.

Essa condenação está diretamente ligada à linguagem e à ética. Nossos políticos – as exceções só fazem reforçar a regra – engendram uma linguagem vazia e adotam uma ética sem a menor consistência.

Vivemos uma confusão entre falar, expor ideias, prestar contas e fazer propaganda. Uma conturbada relação entre fazer e falar.

Num tempo de exposição exagerada e de holofotes famintos por uma novidade por mais quinze minutos, políticos se confundem com celebridades e cultivam ares de artista. No tempo das redes sociais e das emissoras de cada esquina, falar e agir com linguagem engabeladora e ética discutível é o pão nosso de cada dia.

O problema é que isso, para além de desacreditar a classe, desestimula o cidadão de bem. Faz pensar sobre a validade do trabalho-serviço ao próximo e da exposição às lentes ávidas por escândalos e difamações.

É lamentável, mas, nesse cenário, impera a lógica do “quanto pior, melhor”. Para quem deseja, apenas, ascender pessoalmente, a crítica ao trabalho alheio não se dá por conta da necessidade de melhoria ou reparos no serviço prestado; antes, no achincalhamento público do outro, na tentativa de repercussão positiva para si.

O que está em jogo não é o serviço público, mas, ao contrário, as vantagens que o público traz para o particular.

Enquanto perdurar a lógica da política como carreira, da linguagem como arma, da ética como engodo e do serviço como vitrine, a sociedade só fará se deteriorar e os maus terão mais chances.

Entre falar e fazer há um abismo imenso; saltar de um lado ao outro exige coragem e, antes de tudo, competência. Em outras palavras: quem sabe, faz; quem não sabe (ou não quer), critica quem faz!

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