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Sobre ir e vir


Quando aquele rapaz resolveu que devia sair de casa, ele estava movido por uma força que mora dentro de todo ser humano. Um desejo que incomoda e faz a gente ousar, arriscar. Por isso, mesmo sem ter o direito antecipado à herança paterna, pediu ao pai sua parte do inventário e lançou-se numa aventura bem longe da vista e dos cuidados de seus queridos.

Fez como fizeram tantos antes e depois dele. “Sai da tua casa, da tua parentela, e vai ...”.

Ele foi!

Foi, acima de tudo, movido pelo sonho de independência e de autonomia. Sonho que se aloja no coração de cada indivíduo, mas que em poucos consegue desabrochar de maneira plena, empreendendo uma caminhada concreta.

Deixou muito para trás e levou muito consigo. Porém, havia muito pela frente!

Nessa mescla de memória, realidade e esperança estava calcada sua façanha. Sair de casa é algo que exige gente destemida ou, o que não parece ter sido seu caso, atemorizada pela dureza da vida em casa.

Saiu e foi para longe. Longe da sua terra, longe da sua família, longe das suas histórias. Só não sabia que, de tão longe como para onde foi, estava se distanciando também de si mesmo.

Na verdade, aquele que vivia em casa era muito seguro de si e, como tal, ousado e destemido. Longe, para onde foi, descobriu que era como era porque havia muito sob seus pés; e um muito que o fazia ser quem era. Quando saiu, viu-se só e, assim, de destemido, descobriu-se temeroso e frágil.

É como se o menino que vivia em casa fosse apenas um ensaio ainda bravio do homem que prometia aflorar. Somente quando saiu de casa e somente diante da crueza da vida real é que passou a saber um pouco mais de si. “Caindo em si”, pensava na casa do pai e no quanto as coisas eram diferentes.

Às vezes, para saber mais sobre nós mesmos é preciso fazer uma viagem para bem longe. É preciso se distanciar do espelho para perceber que se trata apenas de uma imagem refletida. Os espelhos enganam muito. Mas enganam mais a quem está diante deles!

Longe, caído e depois de tudo ter perdido, resolveu-se por um novo ato de ousadia e coragem: voltar para casa. Uma aposta na generosidade de quem ficou, mas, antes de tudo, a convicção de que os sentimentos e valores que lutavam dentro dele (e que o impulsionavam agora a voltar) tinham sido cultivados ainda em casa, desde os primeiros passos junto do pai, da mãe, do irmão e dos outros.

É bem verdade, entretanto, que se sentia indigno do pai. Seu senso de justiça o fazia crer que a herança antecipada e a irresponsável gastança pelas terras distantes o faziam sem qualquer dignidade ou direito perante o pai. Sabia-se errado, mas resolveu voltar. E voltou!

E, aqui, um momento especialmente belo: o pai ainda o aguardava. Ao avistá-lo, saiu correndo para abraçar e beijar o filho há tanto desaparecido. O menino que voltava era bem menos altivo e prepotente como o que saíra de casa. Tratava-se, agora, de um ser acocorado pela pobreza e pela carestia.

Paradoxalmente, alguém cheio de honra. Um homem que corajosamente arriscou tudo e, mesmo fracassando, apostou na volta.

Sem saber depois de tanto tempo

Se havia alguém a minha espera Passos indecisos caminhei. E parei!

Quando vi que dois braços abertos

Me abraçaram como antigamente

Tanto quis dizer e não falei. E chorei!

Na verdade, o que fora procurar longe de casa descobriu que, de fato, morava dentro de si mesmo e, portanto, em casa. Voltou porque, ao sair, estava em busca de sua própria casa. Foi para voltar!

Ao sair, pensava que, verdadeiramente, havia rompido com o passado e, mais, que as coisas e memórias do passado haviam rompido consigo. Equivocou-se porque o passado assume parcela de nossa carne e, em certo sentido, é inviolável.

Fui abrindo a porta devagar

Mas deixei a luz entrar primeiro

Todo meu passado iluminei. E entrei!

Meu retrato ainda na parede

Meio amarelado pelo tempo

Como a perguntar por onde andei? E eu falei!

A recepção foi especialmente calorosa. O envelhecido moço foi saudado por uma farta festa, com dança inclusive, porque estavam todos muito alegres e surpreendidos com a grata novidade pregada pela vida.Aquele que estava morto revivera!

O pai, além da festa, lhe calçou sandálias novas nos pés. As que o calçavam quando saíra de casa se gastaram com o tempo e pelas estradas distantes por onde pisou. O gesto paterno, todavia, extrapolou a substituição dos calçados. Sandálias são símbolos de homens livres. Calçar sandálias novas no jovem recém-regressado é o mesmo que lhe incentivar a sair de novo. Se não incentivar, ao menos lhe assegurar o sagrado direito de sair.

Para o pai, a beleza do regresso deveria ser coroada com a certeza de que o filho permaneceria exclusivamente por vontade e não por necessidade ou falta de opção. As sandálias são, concomitantemente, portas abertas para entrar e para sair de novo.

Todos em casa estavam felizes. Menos um. O jovem que saiu deixou um irmão mais velho para trás. Um rapaz embrutecido pela serenidade da casa do pai. Um homem ranzinza e cheio de defesa. Amargurado com o irmão ou, quem sabe, por causa do irmão. Uma pessoa triste!

Era ainda dia quando seu irmão chegara de volta. Ele ainda trabalhava no campo e, ao voltar para casa, percebeu uma movimentação diferente em casa; uma festa diferente da rotina da casa do pai. Teve medo de entrar. Chamou um criado e quis saber do que se tratava. Indignou-se!

Como seu irmão mais moço, experimentava uma crise de dignidade. Se o mais novo se via como indigno porque tinha um débito com seu pai, esse se enxergava credor do pai. Afinal, sempre trabalhara duro em casa e nunca tinha gozado de uma festa tão especial. Por que tanta honra para um desgarrado que prodigamente jogara tudo fora? Mais do que isso, na sua visão das coisas, um sujeito imoral que irresponsavelmente esbanjara as economias de uma família.

Quem fica em casa geralmente se ressente de não ter saído. Mas porque não saiu? Ou, porque não sai agora?

É verdade que há quem saia sem saber o destino a alcançar, mas sair supõe saber para onde ir. Quem estaciona em casa é porque, mesmo cultivando o desejo de ousar, ressente-se da falta de coragem, muitas vezes escondida sob o pseudônimo de “oportunidade”.

O irmão mais crescido era trabalhador e responsável, mas, em certo sentido, medroso. Medo é nome da força contrária que nos impede de caminhar.

Há culpa em não sair? Culpa de quem? Será algo relacionado à personalidade de cada um? Será o pai um castrador daqueles que inibem a ousadia dos mais jovens? Se assim o é, talvez o irmão mais novo, apercebido dessa característica paterna, decidira em sair exatamente para não se deixar crescer amargurado como ocorrera com seu irmão mais velho. Sabe-se lá!

A atitude do pai, todavia, revelou um homem disposto a contribuir com o crescimento dos filhos e, acima de tudo, desejoso de ajudá-los em seu auto-conhecimento. “Meu filho, tudo o que é meu, é teu!”

Quis ajudar seu primogênito ver que a festa se deu porque o mais novo fugira de casa. Ele esteve sempre em casa, ao menos, pela ótica do pai.

Por sua própria visão, o mais velho talvez estivesse enxergando que estava, na verdade, fora de casa. Ele trabalhava na roça quando seu irmão voltou e quando vira, de fora, a festa preparada pelo pai. A despeito de estar fisicamente perto do pai, seu espírito estava em outro lugar, perdido entre o desejo ousado e coragem cerceada. Não se via como filho e, por isso, não sabia que o que ao pai pertencia a ele também lhe era de direito. Por isso, suas palavras são de um serviçal injustiçado pelo patrão.

Conhecer o seu lugar é um ingrediente valioso para saber aonde ir. Mais importante do que saber o destino é conhecer o ponto de partida.

O itinerário do mais jovem ajuda a compreender que o percurso de quem busca realização e auto-conhecimento (ou, simplesmente, felicidade) é como a rota de um bumerang. Vai e volta. Vai para voltar.

O jovem que saiu descobriu longe o valor da casa de sua infância. O que ficou descobriu que o pai não é um patrão. A indignidade experimentada pelos dois foi suprimida pela generosidade de um pai pouco preocupado com justiça; um pai atento a digna peregrinação de dois jovens em busca de sentido para vida.

Voltar é especialmente importante, mas depende impreterivelmente de uma saída corajosa. Isso é algo um pouco além do simples direito de ir e vir.

“Sai da tua casa e vai para uma terra que te mostrarei.”

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