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Prof. Ricardo Lengruber (ricardo@lengruber.com)

Sobre a eterna-idade


Faz um ano que ele nos deixou. A saudade é muito forte, ainda. Não foi possível se acostumar à ausência. Sobrevive a memória do sorriso gratuito e do acolhimento sincero. Ressinto a falta do canto da cama vazio e disponível pra deitar e se aconchegar em seu colo; adormecer sem pressa e perceber que ele estava por ali, deixando o tempo se encarregar de me adormecer e me trazer de volta. Isso dava sentido aos dias simples da semana, quando a rotina se permitia ser invadida por essas amenidades essenciais.

Meu avô querido se foi e deixou um legado formidável: a vida é, por vezes, cruel, mas, acima de tudo, crua. Não há fantasias e faz-de-conta que dêem conta de travesti-la. Nada, todavia, que um sorriso generoso não revista de magia e bálsamo.

Sempre que ouço um trompete, desejei tê-lo ouvido mais, melhor, cuidadosamente. Hoje quando ouço uma melodia bela desfilando pelos pistos da corneta, descubro que ele permanece, de alguma forma, vivo. A saudade tem poderes mágicos: faz possível a convivência entre mundos, em tese, separados. Não sei bem porque, mas percebo sua companhia. Sinto um movimento de lábios e um franzido de testa que mesclam aprovação e receio. Indicam o caminho, mas acautelam os passos.

Gosto de saber que eu, como meu irmão e primos, éramos presente pra ele. Meu avô soube curtir seus netos, especialmente os mais velhos, com quem conviveu mais proximamente. É gratificante saber que se faz parte da vida de alguém. E é inquietante saber que esse mesmo alguém estará indissociadamente ligado a você.

Não nutro tristeza, alimento, isso sim, memórias e esperanças. Memórias de um tempo que, apesar de passado, inspira os dias que me exigem vida; esperanças que me impelem a olhar adiante.

E mirar o futuro significa atentar para os meninos que convivem comigo, a quem chamo de filhos. Gente independente que insisto dizerem serem “meus”. Sei que não são, sei que debandarão num dia desses; sem avisar quando nem porque, os verei de pé sobre suas próprias pernas e os verei caminhando rumo aos seus destinos e escolhas e incertezas. O que desejo, disso tudo, é que me levem consigo; me tenham como carga na mochila, como bússola que orienta e, por que não, como mapa furado que devem evitar.

Desejo que olhem para os avós como eu tive a chance de ver e conviver com os meus. Saibam integrar vida vivida e vida por viver. Reconheçam que não há fórmulas prontas e inequívocas.

Sei que ainda há muito a viver, mas anseio pelos meus netos. Nas palavras do Affonso, “o jeito é esperar. Qualquer hora podem nos dar netos. O neto é a hora do carinho ocioso e estocado, não exercido nos próprios filhos e que não pode morrer conosco. Por isso, os avós são tão desmesurados e distribuem tão incontrolável afeição. Os netos são a última oportunidade de reeditar o nosso afeto.”

Desejo, de alguma forma, me reencontrar com meu avô, quem sabe, na afeição reservada aos netos que ainda são somente promessa. Intuo que, neles, memória e esperança se darão as mãos.

Enquanto o tempo segue seu curso – mais corrido que o desejado, menos célere do que o esperado – paradoxalmente – transito no desequilíbrio de uma corda que ata passado, presente e futuro.

Presumo que a aparente linearidade da história esconde uma complexidade com a qual temos alguma dificuldade de conviver. O passado insiste em habitar o presente, mas o futuro – essa promessa incontida – não se permite não visitar todos os dias o presente; não deixa de infundir-lhe de sentido e promessa. O futuro emprenha o presente.

A prece que me resta, neste dia de alguma nostalgia mais vívida, é que tenha a sensatez de deixar o passado vivo, o realismo de viver um presente consequente e a intrepidez de esperar por um futuro redentor.

Quando “meus” filhos se deitavam no colo em que me aconcheguei tantas vezes, não imaginava que estava diante do que realmente dá sentido à vida: as pessoas não existem para viver e morrer, como plantas e bichos; estamos aqui para plantar sementes que nos transcenderão, gente que viverá o que não fomos capazes de viver, gerações que nos redimirão e nos libertarão.

Presumo que seja isso a que se dê o nome de eternidade!

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