A visita do Papa Francisco ao Brasil foi o tema central da cobertura jornalística dos últimos dias. Houve uma espécie de monitoramento em tempo real de tudo que dizia respeito à agenda do pontífice. Diria, inclusive, que houve certa saturação e eventual sensacionalismo.
É verdade que o cardeal Bergoglio é um sujeito carismático. Sua fisionomia cordial e atenciosa cativou muita gente. O simbolismo de sua função e seus gestos contribuíram muito para a receptividade positiva que experimentou. Não há porque pensar que não houve espontaneidade e sinceridade nisso tudo; esbarraria na leviandade se assim escrevesse. O que não é possível, todavia, é presumir espontaneidade da imprensa e da mídia; aí seria infantilidade.
Francisco tocou em questões sérias. Surpreendeu com uma postura mais pastoral e relembrou-nos o quão poderoso é o discurso religioso, sobretudo quando calcado em simplicidade. O papa é, seguramente, um homem religioso; desses que nos fazem pensar no lado bom da existência, que nos ajudam a reacender a chama da fé. Suas mensagens (breves e diretas) foram um bálsamo em tempos de notícias tão desanimadoras. Falar dos vovôs e dos pobres resgatou o lugar dos marginalizados na igreja e na sociedade.
Intuo que sua principal intervenção tenha sido no tocante ao clero e sua visível ostentação, cada vez mais crescente. A "psicologia de príncipe" foi atacada de forma contumaz. Francisco tocou na ferida acertadamente.
Além disso, Francisco nos ajudou a enxergar que a espiritualidade tem sempre lugar na vida. Sua fé cristalina lhe outorga muita simplicidade e cuidado com os pobres; lhe concede imunidade à espetaculização dos seus gestos. Uma constatação recorrente nas ruas é que "ele é gente como a gente"! Isso é muito bom. Trata-se de um aguçado testemunho do Evangelho e de Jesus.
Na base da JMJ, houve eventos importantíssimos que sequer foram tocados pela grande mídia. Espaços como a "Tenda das Juventudes" e "Cidade da Fé" prestaram um serviço fundamental no que concerne ao espirito da Jornada. Diria que a Jornada aconteceu de fato onde as lentes não se preocuparam em registrar.
Mas não se pode, por outro lado, ser ingênuo. Primeiro, porque muito do que se sente, numa situação dessas, não é fruto, exatamente, de uma experiência autêntica de fé; antes, de uma fabricação de sentimentos e emoções produzida pela mídia e sua eficiente capacidade de fazer chorar e sorrir. Segundo, porque juventude não é sinônimo de progressismo ou de ideário revolucionário; por vezes, não raro, a multidão que lotou a praia é conduzida, como rebanho. Terceiro, porque, apesar de o Papa Francisco ser muito simpático, não há que esquecer que ele é um Papa. Ou seja, atrás dele há uma instituição dentre as mais conservadoras da humanidade. E ele não está acima dela, por mais que se queira fazer pensar isso, quando se ouve um discurso mais aberto e se presume uma revolução na igreja!
Senti falta de uma discussão sobre a laicidade do Estado brasileiro. Os gastos públicos foram expressivos. Há que se questionar sobre a justificativa legal para isso. Em alguns episódios, ficou clara a histórica (e não republicana) relação entre Igreja e Estado, que corrompe o Estado e inibe a autonomia profética da Igreja.
Não houve uma palavra sequer sobre meio ambiente e sustentabilidade, tema indispensável na agenda teológica contemporânea. Sobre a temática da homossexualidade, as declarações feitas (apesar da sensibilidade pastoral) não tocam realmente na questão. Sobre a ordenação de mulheres e o lugar delas na Igreja, houve, até certo ponto, insensibilidade à reflexão tão bem construída pelas teologias feministas nas últimas décadas.
Francisco nos ajudou muito a rever o lugar da religião na sociedade e na experiência humana; mostrou-nos claramente o valor da espiritualidade sincera e da simplicidade que significa ser cristão. Mas sua visita e os esquemas políticos e publicitários que a envolveram nos despertaram para o risco que corremos quando nos alimentamos muito de TV e internet; nos ajudaram a perceber que nem sempre multidão e grandiosidade são sinônimos de mudança ou revolução.
Para ser honesto comigo mesmo e com o que creio, preciso concluir testemunhando o que me tocou pessoalmente. Na chegada à favela de Varginha, o Papa foi informado de um culto evangélico num templo próximo à via de entrada. Decidiu entrar e orar um Pai Nosso com os irmãos que ali estavam. Assim o fez. Assim o receberam. Bela lição da dimensão ecumênica da fé. A única pela qual vale a pena lutar. Porque não há fé genuinamente revolucionária que não seja necessariamente ecumênica. Pena que esse gesto não tenha obtido espaço na mídia. Em comparação com declarações tão presunçosas já feitas pelo Vaticano e seus documentos (como a de ser a igreja católica a única verdadeira Igreja de Cristo), o ato de Francisco valeu mais que mil palavras. Como igualmente impactante foi sua declaração de que "enquanto houver uma criança que morra de fome, não há religioso que possa dormir em paz".
É triste que o papa tenha voltado pra casa e o Neymar voltado a pautar nossos telejornais! Deus nos livre!