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A renúncia de Bento XVI


Homo sum; humani nil a me alienum puto.

Publius Terentius Afer

A notícia da renúncia do Papa abre espaço para uma reflexão interessante sobre a Igreja, a Política e, acima de tudo, a Espiritualidade humana.

A primeira e mais evidente questão é o paradoxo que o Cardeal Ratzinger promoveu. Mesmo antes de ter sido eleito Papa, suas contribuições teológicas sempre soaram em tom conservador no que diz respeito ao governo eclesiástico. Isso também no que concerne ao papel da Igreja no mundo e sua missão evangelizadora.

Temas como a ordenação feminina, o matrimônio de sacerdotes e o lugar dos leigos na igreja sempre esbarraram na intransigência conservadora dos setores que, há anos, fazem valer suas idéias no Vaticano. Isso sem falar na mão de ferro que sempre quis calar a voz saída das periferias da Igreja, especialmente as teologias de libertação nascidas na América Latina.

Outra tônica sempre presente na Igreja pensada sob a tutela do Papa Bento XVI foi a desconfiança com o diálogo ecumênico e as relações inter-religiosas. Símbolo maior dessa postura é a Declaração Dominus Iesus, de agosto de 2000.

É consenso que houve algum retrocesso em cada um dos temas acima apontados.

Tudo isso porque Bento XVI está mais preocupado com a qualidade da fé do que com a quantidade de fiéis. E, nesse aspecto, tenho que concordar que houve coerência. O Cardeal, que por muitos anos esteve à frente da Congregação para a Doutrina da Fé, foi absolutamente consequente com sua visão de igreja e de mundo. Foi um ferrenho crítico do relativismo moral e intelectual vivido nas ultimas décadas e, por conta disso, fez renascer rituais e doutrinas há muito esquecidas pela Igreja.

Curiosamente, o homem que tanto primou pela imutabilidade da Igreja, agora, ele mesmo, relativiza o poder papal. Ao renunciar, anuncia a fragilidade humana que reside mesmo no aparentemente mais inabalável dos cargos. Essa, creio, seja a primeira dimensão do paradoxo de Bento XVI.

Por outro lado, as matérias jornalísticas bem fundamentadas sobre o tema dão conta de que há razões para a renúncia que extrapolam a saúde do papa já idoso. Existem implicações político-econômicas sérias por trás da decisão do Papa.

Há um embate sério entre cardeais por espaço e poder. Uma rede de intrigas e disputas que, historicamente, povoa os corredores da Santa Sé. É ingenuidade achar que as relações de poder na Igreja são muito diferentes das que ocorrem em outras esferas de governança. Há insinuações de escândalos envolvendo documentos, bancos, dinheiro, mordomos e pedófilos.

Mas, apesar de tudo isso, o que chama à atenção é o fato que um experiente homem da Cúria, que é Joseph Ratzinger, e que sempre soube disso, opte por sair de cena. Sua renúncia faz perguntar, então, sobre o que realmente está ocorrendo. Papas aparentemente menos talhados na arte da política vivenciaram dramas semelhantes e não se afastaram da função.

Enfim, essa talvez seja uma segunda dimensão do paradoxo de Bento XVI. Um papa especializado em Vaticano, e na sua política, decidiu por se afastar para, segundo suas próprias palavras, garantir que a Igreja avance e siga sua missão.

Penso, ainda nessa direção, na eventual estratégia que subjaz toda a questão. Numa Igreja dividida em sua cúpula, ameaçada pelas bases que reclamam espaço nas esferas decisórias e com cada vez menos fiéis na Europa que concentra o maior número de papáveis, talvez o melhor caminho seja a possibilidade, de alguma forma, de interferir (in)diretamente na eleição de modo a garantir mais do mesmo. Em lugar de esperar um futuro incerto, a renúncia abre espaço para assegurar que nada mude. Vejo aí a terceira dimensão do paradoxo de Bento XVI. O que nunca se viu e aparentemente é uma mudança substancial é, contraditoriamente, uma forma engenhosa de manutenção do estado atual das coisas.

Há, porém, um aspecto positivo nisso tudo: Ratzinger soube distinguir entre o símbolo papal e a pessoa do Papa. Ao renunciar, ele preserva o símbolo.

Não há como ignorar, também, a corajosa e ousada atitude do Papa. A renúncia é um gesto de profunda maturidade eclesiástica, política e, porque não, espiritual.

Eis como vejo o cenário: a renúncia relativiza o conservadorismo eclesial, acena para a fragilidade política e sugere uma estratégia de manutenção do status quo.

Paradoxalmente, a renúncia, que nada tem de inocente e puramente espiritual, reacende a chama da espiritualidade mais profunda nos homens. Lembra-nos da transitoriedade da vida e de seus valores. Ajuda-nos a enxergar melhor quem somos e o quão frágeis sempre seremos.

O Papa, aquele que assenta sobre a cadeira de Pedro, pedra sobre a qual a Igreja foi erguida, revela ao século XXI que mesmo a mais rija de todas as rochas é desgastada pelo tempo e, pela ação da brisa, vira pó. "Lembra-te que és pó e ao pó há de voltar!"

Resta esperar pelo conclave e aguardar pelo novo Bispo de Roma. Julgo que a Igreja precise mesclar a erudição dos doutores da Fé com o carisma dos pastores do povo de Deus. Entendo que a periferia devesse ascender às cadeiras de decisão. Mas não acredito que isso ocorra já. Infelizmente, ainda há necessidade de muito mais pó para adubar essa terra.

Aposto no paradoxo: agir diferente para manter tudo como sempre!

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