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Creio na ressurreição do corpo


(ainda sobre meu avô e sua despedida)

Acordei durante a madrugada despertado pelo realismo de um sonho: meu avô – de quem recentemente me despedi – estava executando uma ária doce e imponente num trompete prateado e soprado meio de lado sobre os lábios adornados por pequenas rugas ao redor da boca; a testa, franzida, emoldurava os olhos que alternavam sorriso e oração. Acordei. Lamentei: era um sonho!

Dei umas rodadelas pela casa e voltei à cama. De certa forma, desejava voltar a dormir para continuar sonhando e terminar de ouvir aquela bela música. Músicas só são belas porque terminam: repousam os ouvidos e o coração no acorde final; mas, quando interrompidas prematuramente, deixam em suspenso o desejo pela pausa final. Como o sonho não me pertencia mais, passei, então, a imaginar: fechei os olhos e terminamos juntos a coda final. Ele sorriu e fomos dormir.

Não me recordo de meu avô ainda tocando seu piston, seja nas bandas ou nos bailes da vida. Ele foi furtado de sua grande paixão aos 51 anos de idade, quando eu ainda não tinha completado 4 anos de vida. Convivemos por longos e frutíferos 33 anos depois disso. A música sempre esteve entre nós, fosse nas memórias revisitadas, fosse nas lições da clarineta que tentei aprender ao longo da infância e da adolescência.

Depois, quando descobri a Teologia, mergulhei noutras partituras. Encontrei um mundo, ao menos para mim, mais amplo e mais profundo. Passei a refletir sobre a vida e a morte. Enveredei pela reflexão sobre o sentido do bem e do mal. A Bíblia passou a ocupar um lugar de centralidade. Descortinou-se o universo das ciências humanas e sociais, da literatura, da história e da filosofia. E surpreendi-me com a beleza plástica que há por trás de textos e músicas, orações e sistemas filosóficos e teológicos.

A morte e o morrer, contudo, sempre me inquietaram. Li, escrevi, estudei e ensinei muito sobre o assunto. O ofício pastoral me impôs a necessidade de lidar com a experiência da morte. Poucas vezes pude me furtar de dizer algo sobre a questão, mesmo sabendo que há tão pouco a falar. Não posso, por isso, deixar de confessar, novamente, minha fé mais profunda: creio na ressurreição do corpo; creio na ressurreição da carne.

A lógica de alguns sistemas religiosos e escatológicos são positivistas demais para quem gosta de música! Essas ideias de recompensa e justiça são, apesar de tão tentadoras por conta de sua matemática, pouco convincentes para mim. Afinal, a vida é bem maior do que os esquemas da lógica. Por obra de Deus, a ressurreição traduz o que há de mais belo na fé cristã: imerecidamente, estaremos todos ao lado do Pai, para sempre.

A Bíblia – na musicalidade de seus textos – ensinou-nos que Deus é Palavra. Revela-nos, com isso, que há uma comunhão estreita entre teologia e poesia, entre fato e imaginação, entre o dado e o esperado. Enfim, entre fé e fantasia. A fé, assim compreendida, é expressa, antes de tudo, pelo símbolo.

Quando acordei do meu sonho avô-paternal, descobri que havia ingressado noutra dimensão da Teologia que há anos venho amando e estudando. Vislumbrei a Teologia como experiência autêntica de fé, quando a presença de Deus extrapola os limites dos postulados doutrinários e mergulha na história e na carne. Sem me permitir ser tomado por um pietismo barato, compreendi que a música que meu avô tocava era sacramento de sua ressurreição.

A exemplo do que ocorrera com Jesus – que estendeu suas mãos feridas para serem tocadas – entendi o que meu avô estava me sinalizando: pela graça de Deus, depois de tanto tempo, voltei a tocar meu piston!

Na ressurreição – a despeito da compreensão lógica – o que ressurge é a identidade mais profunda da pessoa. É assim que creio na ressurreição da carne: acredito na vida elevada a sua potência máxima, não obstante a simplicidade e serenidade de sua realização. Para aquele jovem homem furtado pela vida em plena atividade, voltar a brincar com as notas musicais era a máxima realização que se podia esperar.

E muito mais me ocorreu descobrir e inventar: a música era tão encantadora que acabei por não perceber o seu entorno. Meu avô – que ultimamente repousava cego e encolhido sobre uma cama – estava ereto e de barba feita; de cabelos grisalhos e bem penteados, seus dedos se moviam dançarinamente sobre os pistos de sua corneta; seus olhos enxergavam plenamente, pra fora e pra dentro; seus pés passeavam pelo palco a saudar cada folião e cada colega de conjunto. Acho que estavam no Clube de Xadrez! Talvez fosse um coreto numa praça qualquer em quermesse de domingo!

No anfiteatro, sob o céu de estrelas,

Um concerto eu imagino;

Onde, num relance, o tempo alcance a glória

E o artista, o infinito.

(O Tempo e o Artista. Chico Buarque de Hollanda)

Corro o risco de ser acusado de estar variando. Mas que triste seria da vida se não nos fosse permitido sonhar e, por extensão, criar. É assim que creio – a vida só descansa quando repousa em sua plena realização. Por isso, creio na ressurreição do corpo e na vida eterna.

Foi inevitável, nessa sinfonia de sentimentos, lembrar-me dos meus filhos: o mais velho, que já passeia os dedinhos pelo teclado do piano; o mais novo, que, apesar da pouca idade, já é tão ousado com as palavras. Os antigos hebreus estavam certos em afirmar que a vida se perpetua de geração em geração.

Ocorreu-me, inclusive, voltar a dedilhar minha clarineta há tanto guardada. Lamentei tanto não poder dividir um palco com ele! Não sei se espero para encontrá-lo no meu dia. Não sei se já vou ensaiando por aqui mesmo. O que sei é que toda boa música, por mais longa e intensa que seja, por mais lágrimas que suscite desde os ouvidos, repousará, fugaz, em sua pausa final. O mesmo se dá com a palavra, cujo ponto final é sempre o silêncio. Isso sempre me encantou muito: música, palavra e silêncio.

Enfim, vou esperar um próximo sonho: quem sabe ele, meu avô, não me ajuda a decidir?

Boa noite, vovô! Descanse em Paz!

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