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Ecumenismo de araque


Para além das agressões que povoam uma campanha eleitoral, já desde o primeiro turno da campanha para presidência da República em 2010, há um elemento novo no repertório de críticas e acusações: trata-se de uma discussão acalorada sobre a descriminalização do aborto e a sobre a regularização das uniões civis homo-afetivas.

O processo se iniciou com uma onda de mensagens eletrônicas de conteúdo duvidoso sobre o aborto e o homossexualismo. A candidata do PT tem sido acusada de ser "a favor do aborto" e do "casamento gay" (sic). Não que sejam temas importantes para pautar os rumos de uma campanha, muito menos de um governo. O que parece estar em tela, na verdade, não é a temática em si, mas o fato de setores conservadores da sociedade estarem testemunhando a possibilidade de perda por ainda mais quatro anos do controle da política nacional.

Como esteve evidente que a candidata do governo tinha chances reais de vencer no primeiro turno, a emissão de tais mensagens cumpriu um papel valioso para os adversários: plantar a duvida e ganhar tempo. Não é novidade que esse tipo de "boato" sempre ocorra em disputas de tal monta; a novidade ocorreu quando tal prática foi instrumentalizada e potencializada por um setor da campanha.

Sem estarem diretamente envolvidos no esquema da disputa eleitoral, setores reacionários de instituições religiosas cristãs se viram ameaçados pelos inimigos da "moral e dos bons costumes" e se puseram a defender seus pontos de vista e valores. Em nome da "defesa da vida", grupos católicos e evangélicos se uniram para criticar a candidata e o fizeram por meio do apelo emocional e da manipulação da verdade.

Via de regra, o que se lê nos emails e se ouve pelas ruas é que a candidata é "a favor do aborto" e que "obrigará o casamento gay"!

A mim, parece claro que ser favorável a regulamentação da descriminalização do aborto é bem diferente de ser "a favor do aborto". Ser favorável que a rede pública de saúde atenda os milhões de mulheres que fazem aborto anualmente no país é o mínimo que se espera de um Estado livre e democrático. Ninguém aborta, simplesmente, porque quer. Tratar uma mulher que aborta como criminosa é, no mínimo, aviltante.

Parece claro, também, que a regulamentação de uniões civis entre pessoas do mesmo sexo é bem diferente de ser a favor de "casamento gay". Casamento é uma instituição sócio-religiosa que traz consigo características e fundamentos que a sociedade cristã-ocidental forjou. O que se defende é que cidadãos que vivem juntos (a despeito de serem do mesmo sexo) tenham os mesmos direitos previstos em lei para quem divide uma vida e constrói um patrimônio; salvaguardados, inclusive, os direitos de não serem vítimas de preconceito e discriminação. É verdade que as igrejas têm limitações nesse pormenor, mas não há lei alguma que aspire obrigar as instituições religiosas a celebrarem “casamentos gays”. A única coisa que se espera é respeito. Aliás, há igrejas repletas de pessoas sérias que tiveram verdadeiras experiências religiosas que já atendem a essas demandas e incluem tais casais. As igrejas mais tradicionais poderão seguir seus caminhos ...

Não se trata de apoiar ou concordar com essa ou aquela opinião, mas o fato é que é lamentável que, no Brasil, católicos e evangélicos - que se digladiam por tudo - se unam por conta de algo menor e, pior, manipulado externa e ideologicamente.

Verdade seja dita: algumas cúpulas (católica e evangélicas) já se pronunciaram e trataram de mostrar que tais ações contrárias a candidata do governo não representam a opinião oficial da instituição, que, em geral, se dizem não-partidárias! Mas justiça seja feita, por outro lado, que não o fizeram com a mesma potência dos boatos disseminados. Vejo como tão sérios e ofensivos como são os boatos, a omissão e a conivência das igrejas.

Talvez fosse o caso de as igrejas - que defendem tanto a vida - se mobilizarem numa campanha verdadeiramente pró-vida, que se dispusesse a dialogar com jovens sobre a sexualidade de maneira séria e consistente. Algo diferente dos discursos moralistas e hipócritas que maquiam a realidade e mais atrapalham do que ajudam no processo de amadurecimento dos adolescentes. Talvez seja o tempo de as igrejas abdicarem de suas teses fundamentalistas e assumam em sua prática uma efetiva defesa dos direitos humanos. Uma discussão dos reais problemas da sociedade brasileira, em vez de gastarem tempo e recursos com projetos internos e proselitistas (em busca de benefício próprio) sem qualquer densidade social.

É realmente decepcionante que a única forma de ecumenismo efetivo entre igrejas evangélicas e católicas no Brasil esteja se dando por conta da instrumentalização que setores velhistas da política nacional estejam fazendo em nome de falsos valores, colocados de forma ideologicamente manipulados.

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