Não é de hoje que se ouve falar em escândalos de natureza sexual envolvendo personagens do clero católico. E, nesse tema, estão as discussões sobre celibato, homossexualidade e, tristemente, pedofilia.
Acredito que sejam coisas distintas entre si e merecem ser tratadas separadamente, embora nem sempre a linha tênue que as separa seja clara o suficiente.
O homem e a mulher religiosos, na Igreja Católica, fazem três votos básicos no ingresso de sua vida institucional: pobreza, obediência e castidade. É como que uma entrega radical à instituição e àquilo que ela representa em termos de doutrina. Até aqui, nada de problemático em si. O problema está, me parece, na vivência concreta dos votos.
Se é verdade que se pode viver em obediência a autoridades constituídas como quem vive em acordo com ideais que essas autoridades representam, é verdade também que a desobediência está no cerne da vocação religiosa. Desobedecer significa, em última análise, reconhecer a falibilidade da instituição e lutar pela preservação do que a instituição deveria representar, mas escapou de seu testemunho. Mau é quando a obediência silencia o senso crítico em nome da preservação de uma carreira.
Se é verdade que se pode viver em pobreza como gesto profético diante da absurda comercialização da vida e de seus valores mais seminais, é verdade também que mora dentro de cada ser humano uma fonte inesgotável de desejo e empreendedorismo. Ruim é quando o voto da pobreza inibe esse espírito realizador e acomoda a pessoa numa entrega resignada a uma instituição provedora, mas castradora.
Se é verdade que se pode viver em castidade e, nessa decisão livre de cada indivíduo, fazer uma experiência mística de sublimação em nome do Reino, não se pode perder de vista que o celibato será sempre uma diminuição. Se o for por uma decisão consciente e sabedora da radical entrega que exige tal experiência mística, não haverá problemas. Mas se houver um recalque mal elaborado, emergirão desequilíbrios atrozes.
Sobre isso, uma séria questão é que a Igreja católica não integra, verdadeiramente, a dimensão do feminino nos seus quadros sacerdotais; ao contrário, o faz objeto de tentação e de permanente suspeita. Como a sexualidade é um dado antropológico de base, não se pode negar a qualquer um que seja a sua experiência. E isso não se faz cortando um pólo da equação masculino-feminino. O efeito dessa parcialidade é que muitos distorcem e tornam obsessiva a sexualidade. Daí torna possível a ruptura do voto e abre a possibilidade para desvios sérios. O celibato é uma castração que só ganha sentido se for assumida como causa em razão do Reino e como completa disponibilidade aos demais. Mas será sempre uma castração, uma diminuição. Bem vivido, o celibato não é um voto de desamor, mas de superabundância de amor por causa do Reino e de Deus. Isso implica uma profunda mística (que não é encontrada em todas as pessoas), caso contrário o celibatário vive triste, ansioso e cheio de desejos. Sem falar na absurda ausência da companhia conjugal, da família e do afeto.
Não considero que a castidade seja subterfúgio para o aparecimento do homossexualismo. Tal experiência é um ingrediente da vida humana em si. Há quem considere como pecado ou transgressão. Mas o fato é que a capacidade humana de amar e se entregar ao outro é maior e mais abrangente que a relação macho-fêmea. As pessoas se amam e isso não obedece à regra pré-estabelecida pela biologia, por exemplo.
As questões que se colocam são: em que grau a exigência irredutível do celibato inibe vocações genuínas entre os que não se sentem preparados para tal vida? E, ao mesmo tempo, incentiva discutíveis vocações dos que terão um salvo-conduto social dentro de uma instituição que reprimirá relações entre homens e mulheres em benefício de convivências prioritariamente entre pessoas do mesmo gênero?
As igrejas – e nesse caso, inclusive, as evangélicas – precisam ter claro o que pensam e querem no tocante à questão da sexualidade humana. Se condenam como pecado o homossexualismo, que se munam de argumentos sólidos e convincentes e encontrem uma maneira de conviver numa sociedade cada vez mais desejosa de tolerância e respeito. Se não veem problemas nessa forma de experienciar a vida afetivo-sexual, que se munam de coragem e encarem a questão. Mas que não se escondam atrás de textos e dogmas velhos que mais oprimem que qualquer outra coisa. Que não condenem ao silêncio e à clandestinidade muitos de seus filhos e filhas que genuinamente querem servir a Deus (dentro ou fora da Igreja).
Que não se confunda, porém, nada disso, com pedofilia. Que fique claro que, da mesma maneira que é lícita a opção sexual de cada indivíduo, bem como sua condição psicossexual, é criminosa e imoral a usurpação que membros dos cleros das muitas igrejas fazem da credibilidade que suas instituições gozam junto às famílias. Crianças e jovens são confiados aos cuidados educacionais e catequéticos do clero e devem ser respeitados na sua integridade psicológica, afetiva e corporal. O abuso sexual de crianças e jovens é crime e como tal deve ser encarado. Bem como é crime acobertar crimes de terceiros.
Não acredito que haja conexão lógica entre castidade, homossexualidade e pedofilia. O que há é um denominador comum entre os três: a sexualidade. Se a castidade ou a homossexualidade (ou qualquer outra forma de experiência da sexualidade) forem vividas de forma mal resolvida, elas podem eclodir negativamente e uma de suas excrescências pode ser o crime da pedofilia.
É possível ser celibatário sem qualquer realização homossexual da afetividade, embora isso não seja necessariamente regra. Acredito em vocações genuínas de indivíduos homossexuais, mas que optaram, como fazem os demais, por se absterem de sua vida sexual em nome da vida religiosa.
É possível, ainda, que haja autêntica vocação religiosa que discuta a castidade. O que deve estar presente, em qualquer um dos casos, é a honestidade de colocar sobre a mesa a verdade dos fatos.
É factível que haja crimes de pedofilia entre celibatários e entre homossexuais. Mas não vejo que isso ocorra porque são um ou outro. O crime de pedofilia não tem nada a ver com homossexualidade ou com castidade. Tem a ver com uma mente doente.
O fato é que vivemos uma sociedade que negocia o corpo. Um tempo que faz da corporeidade humana um produto que se compra e se vende. O corpo de crianças e jovens se torna, com isso, produto virgem cobiçado por consumidores mais exigentes – leia-se psicopatas!
Não é a Igreja a responsável pela pedofilia na sociedade, tampouco é ela a única praticante de tal atrocidade. A sociedade que construímos é pedófila. Há pedofilia dentro de casa, da escola, dos consultórios etc.
O pecado da Igreja está no fato de negar ao seu clero a possibilidade de experimentar a radicalidade do encontro sexual como um ingrediente inerente a realização humana. Pecado que se desdobra numa vivência forçada da castidade. O pecado mortal, todavia, ocorre quando, em nome da manutenção da instituição, os crimes doentios são camuflados e jogados para debaixo do tapete. Isso, sim, é inadmissível.
Quem sabe chegará o tempo em que as igrejas (todas elas) reconhecerão na vocação um espaço de realização do indivíduo que se dispõe a viver para os outros e descubra que a experiência da sexualidade faz parte dessa radical vivência – independente de seu colorido homo ou heterossexual.
Quem sabe surgirá uma era em que as pessoas serão vistas não pela sua opção ou condição sexual, mas pela sua sincera motivação no que tange à sinalização da presença de Deus no mundo.
Quem sabe amanhecerá o dia em que não se tolerará qualquer crime que seja, em nome de qualquer deus que seja!