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Prof. Ricardo Lengruber (ricardo@lengruber.com)

Adeus ano velho? Feliz ano novo?


O tempo é uma referência sobre a qual dependuramos nossa história. Tudo que há está sob a ideia de localização no tempo, na passagem dos acontecimentos.

A ideia de passado, presente e futuro é universal e, por meio dela, habitamos a realidade. Entre os semitas, por exemplo, passado e futuro são menos importantes do que as noções de completo e incompleto. Não se trata de saber se o acontecimento está atrás ou à frente, no tempo, mas discernir se a ação está pronta ou inacabada. De todo modo, não há dúvidas: o tempo é mais que mera convenção; é, nas palavras do poeta argentino Martín Fierro, “a tardança daquilo que está por vir”! Algo que vem do futuro – daquilo que ainda não está – e emprenha o presente e o significa por completo.

A palavra calendário, por exemplo, que provém do latim (calendarium) e significa "livro de contas", "registro", era utilizado, no tempo dos romanos, para designar o livro onde os agiotas apontavam o nome dos seus devedores, assim chamado porque era costume pagar as dívidas nas calendas de Janeiro. As calendas, entre os romanos, eram o primeiro dia de cada mês; este vocábulo provém do verbo latino calare, que significa chamar, convocar, anunciar.

Essa história é muito sugestiva: o calendário como um inventário do tempo que cobra juros por sua passagem. Cada dia que passa tem um preço a ser pago, uma multa a ser quitada.

A palavra calendário passou, depois, a designar o livro litúrgico onde está inscrita a cronologia das solenidades eclesiásticas. Quando o tempo de Deus se encontra com o tempo dos Homens.

O ciclo de um dia está, claramente, delimitado pela alternância de claro e escuro.

A rotina semanal, por sua vez, é uma convenção política e ideologicamente orientada pelos antigos hebreus: o trabalho, tão nobre e honroso, deve ser entremeado por descanso e festa.

Por outro lado, a sequência mensal está, originalmente, baseada na relação Terra-Lua. O ciclo lunar (28 dias) e a alternância dos meses (com adaptações necessárias astronomicamente) foram forjando aquilo que denominamos “ano”.

Um ano solar, também chamado ano das estações ou ano trópico, é o intervalo de tempo que a Terra leva para realizar uma volta aparente em torno do Sol, partindo do primeiro ponto vernal, ou ponto Gama, e retornando a ele. Ou seja, é o período de translação da Terra.

Um ano é um ciclo completo – dias, semanas e meses começados e terminados em sua totalidade. Estações inteiras vividas e esgotadas. Tudo pronto para recomeçar.

Janeiro tem este nome por ser consagrado a Jano, divindade masculina da mitologia romana. Era o deus do céu luminoso, das origens e princípio de toda a existência; era ele quem abria e fechava a luz do céu. Janeiro era o décimo primeiro mês do primitivo calendário romano.

Nosso Janeiro, no ano de dois mil e onze, pareceu-se pouco com o anfitrião romano das origens e princípio de tudo. Nosso Janeiro foi cheio de dor e tormenta. Centenas de pessoas morreram; a infra-estrutura das cidades serranas do Rio se mostrou muito precária; patrimônios se dissolveram na lama. Mas, o pior: como tudo tem começo, meio e fim, há a urgente e imperiosa necessidade de recomeçar; e como recomeçar? Por onde? Para onde?

Mas recomeçamos, lutamos, limpamos, organizamos, reconstruimos, lembramos, choramos. E assim estamos todos, olhos mirados no futuro, esperando e trabalhando para que dele nos advenha um presente compensador.

Quanta dor houve! Além daqueles que tivemos de desenterrar para enterrar novamente, quanta sujeira desenterrou-se dos gabinetes. Quanto dinheiro suado do imposto pago por gente de bem desviado por gente irresponsável e sem coração!

Quantos há ainda sem uma casa para descansar no fim do dia!

Fato é que dois mil e onze começou, mas, afinal, quando terminará dois mil e onze?

Intuo que no dia 31 de dezembro esse ano não terminará. E suponho que isso não ocorrerá porque o tempo está diretamente ligado ao sentido daquilo que nele acontece. As estações passaram, os meses se completaram, as semanas ofertaram seus dias sabáticos e os dias, cada um deles, presenteram-nos com uma chance nova, mas esse ano será bem maior do que um intervalo de 365 dias.

Esse nosso dois mil e onze passará a integrar, antropofagicamente, nossa memória mais profunda. Incorporará nossa pele e, visceralmente, nos convidará todas as horas a não esquecer a fragilidade que somos nós.

Mas, por outro lado, dois mil e onze pode nos deixar uma herança bendita. Qual Jano que, da porta do Céu, anunciava a origem de tudo, nosso Janeiro de dois mil e onze pode nos alardear que um tempo novo tem que começar.

A questão, porém, é que a mitologia dos antigos nos ajudou a compreender a complexidade da vida, mas nos ensinou, acima de tudo, que a História é construção humana e, como tal, depende das pessoas concretas que sobreviveram e têm um desafio pela frente.

Ao final, o melhor mesmo é que dois mil e onze não termine jamais. Mantenha-se sempre vivo na memória e, sob o olhar atento daqueles que desejam se reerguer, coopere na construção de uma nova sociedade, mais respeitosa com o meio ambiente e mais fraterna para com o semelhante.

O tempo – aquele que cobra juros pelos dias que passam – não deixará incólume se perdermos um dia sequer sem fazer algo para que a tragédia de janeiro não se repita. Como as antigas calendas, dois mil e onze sempre nos convocará à mudança.

Não dá para dizer adeus ao ano velho. Ele jamais envelhecerá. O que nos resta, apenas, é desejar “Feliz ano novo”!

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