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Prof. Ricardo Lengruber (ricardo@lengruber.com)

Computadores e picadeiros


Uma das conquistas mais celebradas da civilização moderna é a, assim chamada, “vida privada”. Para um indivíduo de hoje, nada é, aparentemente, mais valioso que sua privacidade.

Mas essa é uma forma recente de ver as coisas. De início, o máximo que havia era uma diferenciação entre a esfera pública e a privada. No mundo Greco-romano, por exemplo, público é o que se referia a conduta política do cidadão na polis; tudo o mais, tudo o que não fosse de interesse da coletividade se escondia sob a máscara da intimidade e da privacidade.

Mas, curiosamente, foram os mesmos antigos romanos os primeiros a ensaiarem o que classificamos modernamente de individualidade. O termo persona, que designava a máscara sob a qual o ator representava o seu papel, alargou-se para significar a posição do cidadão na vida jurídica, como sujeito de direitos e obrigações. É como se houvesse um papel a ser desempenhado pelo indivíduo na esfera privada e (outro) na pública.

O mundo medieval, por seu turno, tornou míope da visão dos indivíduos sobre sua relação com a sociedade. O feudo tornou-se quase que auto-sustentável e, como tal, encerrou em si mesmo um mundo próprio desvinculado de tudo e de todos. A vida doméstica ganhou muito mais espaço que a vida pública, mas o que não significou, necessariamente, mais direitos individuais.

Foi somente a partir do século XV que o mundo ocidental vergou-se com afinco sobre direitos “naturais” dos indivíduos. Pensadores como Hobbes, Locke e Rousseau foram determinantes para a clareza quanto aos direitos a liberdade, a prosperidade, a segurança e a resistência à opressão. Além de seus desdobramentos mais imediatos como o direito ao voto e ao respeito da legalidade.

Em 1948, a Assembléia Geral das Nações Unidas promulgou a Declaração Universal dos Direitos do Homem, cujo sentido repousa em, acima de tudo, proteger os direitos e liberdades das pessoas além das fronteiras físicas dos Estados. Destaque deve ser dado ao Artigo XII: “Ninguém será sujeito à interferência na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataque à sua honra e reputação. Todo homem tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.”

Está claro que com o avanço das formas de organização de nossas sociedades, ocorre também o desenvolvimento das maneiras de interpretar e salvaguardar os direitos de das pessoas e das comunidades.

Mas, curiosamente, há um dado que parece contrariar tal lógica. Se, por um lado, há uma notável busca por intimidade e por direito a privacidade, por outro, impera uma espécie de vontade deliberada pela publicidade da vida íntima.

O mesmo mundo moderno que conquistou direito a privacidade desenvolveu tecnologia. E, no toante específico a tecnologia da informação, logrou possibilidades antes nunca vistas de comunicação. O que, aparentemente, é puro benefício, tem se mostrado uma teia labiríntica de exposições e usurpações da imagem de si e dos outros. As fronteiras entre o público e o privado parecem que voltaram a ser menos claras e mais difusas.

Interessa-me saber que energia move indivíduos a publicarem suas vidas na televisão e revelarem-se, descortinadamente, num reality show sensacionalista (perdoem-me a redundância).

Isso talvez se explique pela indústria do entretenimento e das celebridades da última hora. Mas o que dizer das redes sociais virtuais por onde circulam as mais íntimas informações dos indivíduos. Gente que levou séculos para ter sua privacidade assegura pela Lei que agora voluntária e deliberadamente expõe seu dia-a-dia por meio de fotos, vídeos, depoimentos, declarações, amigos, relatos, textos etc.

Talvez os psicólogos tenham fórmulas bem construídas para ajudar a entender o processo que se move por trás da personalidade que nos faz caminhar de forma tão ambígua entre o público e o privado. Mas me causa muita estupefação ver gente que parece amar ter sua vida posta na vitrine como se fosse entretenimento para os outros.

Os romanos cultivaram o circo como espaço público para deleite individual e comunitário dos gracejos da vida doída de cada dia. Os internautas fizeram da rede picadeiro onde os palhaços são os próprios navegantes. Curioso!

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