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(Des)caminhos na leitura da Bíblia


A Bíblia é um fenômeno curiosamente ambíguo. Se, por um lado, é um instrumento coercitivo utilizado por instituições religiosas no controle e na dominação; por outro, é fruto de uma pluralidade riquíssima de processos históricos, sociais e culturais que, ao longo de séculos, forjaram a identidade ideológica e religiosa de grupos judeus e cristãos. A mesma Bíblia que oprime é a que inspira! Oprime porque o que se lê - tão distante no espaço e no tempo - se presta a interpretações anacronicamente exigentes e impertinentes. Inspira porque o que se lê - apesar das distância espaço-temporais - nasce de uma individualidade que transcende os limites do momento e de uma coletividade que reclama a dignidade humana que extrapola as fronteiras dessa ou daquela cultura.

1.

Mulheres e homens da Palestina do primeiro milênio antes de Cristo não liam uma Bíblia. Viviam uma experiência germinal. O encontro conflituoso entre as expressões religiosas dos setores que estavam afinados com o poder e os muitos grupos marginais exigia uma tomada de decisão. Ou se tomava a forma da tranqüila religiosidade dominante e parcimoniosamente mantinha-se tudo em seu devido lugar. Ou, por outro turno, se permitia pensar na possibilidade de liberdade. A experiência concreta vivida na história fez com que as vítimas vislumbrassem possibilidades até então inimagináveis. De um lado, estavam as cidades, palácios e templos; de outro, pequenas multidões excluídas.

Carismáticos e perspicazes, os profetas perceberam a discrepância entre o culto dos centros e a efetiva presença de Iahweh na vida das pessoas. Permitiram-se olhar de um modo diferente para as coisas. Podiam ter recitado o Alberto Caeiro:

A mim ensinou-me tudo.

Ensinou-me a olhar para as coisas.

Aponta-me todas as coisas que há nas flores.

Mostra-me como as pedras são engraçadas

Quando agente as tem na mão

E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.

(Fernando Pessoa, Poema do Menino Jesus)

Muitos textos que na Bíblia estão são a memória e o testemunho desses conflitos. A periferia não admite mais a arrogância, inclusive religiosa, do centro. Séculos depois, quando se efetivou o processo de canonização dos escritos, essas memórias ganharam seu espaço, mesmo numa sociedade já mergulhada na domesticação daquela fé germinal que não se permitia a clausura sacerdotal. É como se a voz dos oprimidos do passado tenha se tornado na voz dos opressores do presente, mas quase que imperceptivelmente permaneceram ecos daquela experiência fundante.

Os profetas foram, antes de tudo, carismáticos que, movidos por uma profunda experiência mística, intuíam sobre a realidade. Anunciavam uma palavra de esperança aos esquecidos pelo sistema; e denunciavam ferozmente esse mesmo sistema.

2.

Com o passar do tempo e com a mudança na configuração da sociedade Cananéia, o pensamento marginal foi assumindo novo status e a fé originariamente denunciatória foi acomodando-se ao conforto dos altares. Além disso, as ameaças agora ganham novos rostos: assírios, babilônicos, persas, gregos e romanos olham para Israel e Judá com interesses políticos e econômicos bem definidos. Cada momento tem sua configuração histórica bem definida, mas há algo regular e freqüente: desde o seio da nação, há os que cedem ao fascínio do poder e os que permanecem reclamando dignidade. Nesse momento, a Bíblia já está ganhando corpo. Primeiro, a Torah, aparentemente em resposta a exigências persas. Não obstante as demandas do governo estrangeiro, Judá promulgou uma verdadeira colcha de retalhos da sua tradição. É como se quisesse plantar uma constituição. Depois do Exílio, há que se juntar os cacos. Ninguém pode ficar de fora. Tudo e todos têm lugar na constituição. A Torah é uma espécie de harmonização dos muitos diferentes grupos em nome de algo que lhes é maior e mais significativo: a preservação da identidade.

Depois, os nebîim adquirem forma fixa no texto canônico e ganham espaços em que a voz carismática dos antigos pregadores ainda não tinha sido ouvida.

3.

A presença grega e, mais adiante, romana na Palestina faz uma nova e estimulante oferta. A cultura “elevada” se apresenta como uma evolução. Israel se vê diante de uma encruzilhada. Ceder, negociar, resistir, desaparecer! A apocalíptica é uma resposta, no mínimo, inteligente. Há que resistir, mas o inimigo é exponencialmente mais poderoso e, além disso, há que se preservar o essencial da fé. Essa combinação de exigências fez germinar um discurso novo, expressivamente influenciado pelas culturas circundantes, mas radicalmente firmado nas tradições do povo.

O lugar vivencial da experiência e do discurso apocalíptico parece ser o culto. É como se o templo, que sabe ser servil ao poder estabelecido e conivente com ele, tivesse sido usado por novos profetas como novos discursos, mas com a mesma e veemente crítica. Se profetas do passado apontavam o dedo e denunciavam o erro, os novos usam-se de metáforas sofisticadas para a denúncia. Se os sábios do passado discutem o porquê das injustiças e onde está Deus, os apocalípticos já têm as mazelas da injustiça por certo e não duvidam que Deus está com eles. Sobre o trono, não está esse ou aquele imperador, está o Cordeiro.

4.

Na gênese da Igreja de Cristo, os processos são semelhantes. Mais do que um fenômeno espiritual, o cânon é uma experiência sociológica. Comunidades que mais se destacam encontram maiores condições de terem seus textos inseridos na lista oficial.

Evangelhos e epístolas encontram seus lugares na medida em que - ao mesmo tempo - representam determinados grupos dominantes, mas conseguem preservam memórias dos pequenos.

Basta ler 1 Timóteo 2:11-12: “A mulher aprenda em silêncio, com toda a submissão. E não permito que a mulher ensine, Nem exerça autoridade de homem; esteja, porém, em silêncio”; e confrontar, por exemplo com Jo 20,18: “Maria Madalena foi anunciar aos discípulos: “Eu vi o Senhor!”, e contou o que Jesus lhe tinha dito.”

5.

A Idade Média viu nascer inumeráveis comentários da Bíblia; em primeiro lugar, fruto da oração e do estudo nos monastérios, em seguida, a partir do século XII, resultado do ensinamento escolástico. A Bíblia é a obra mais lida durante toda a Idade Média. A hermenêutica desse período, porém, não parece se preocupar com as questões históricas. A Escritura, segundo a definição clássica da verdade como adaequatio rei et inteilectus, não representa um acontecimento histórico como outro fato qualquer. Os autores da Idade Média, atentos mais à fé do que aos fatos do passado, não se interrogaram sobre a referência factual das narrativas bíblicas, ainda que, como veremos, Tomás de Aquino insista no respeito devido à verdade histórica indicada pela letra. A Escritura é um mistério de Revelação e de Redenção e não um fato a ser inserido entre as datas de nossa história.

Apesar disso, a leitura medieval seguia regras bastante firmes, ainda que não formuladas claramente. Henry de Lubac, em L'exégêse médiévale, mostrou como a reflexão segundo quatro sentidos que Agostinho da Dácia sintetizou em seu famoso dístico de 1827: “a letra ensina os fatos nos quais crês alegoricamente, que realizas moralmente e na direção dos quais tendes anagogicamente". Distinguem-se, assim, um sentido literal e três sentidos espirituais: alegórico ou dogmático, moral ou ético e anagógico.

Há uma reciprocidade fundamental entre sentido literal e os outros três sentidos espirituais. Por sentido literal, não é necessário entender os fatos que a exegese tenta reconstituir, mas o que precede cada sentido espiritual, vale dizer, o que precede cada apropriação subjetiva ou o que pertence somente a Deus. O empirismo ou o positivismo modernos são incapazes de compreender esses fatos, que na realidade são de ordem divina e não física. A obra de Deus só pode ser captada na obediência da inteligência e do coração. Para a exegese religiosa, a letra faz parte da história da aliança prestes a se realizar.

O primeiro sentido espiritual é a alegoria. A palavra "alegoria" significa "passagem de um gênero a outro" (aliogenos). O sentido intelectualmente verificado de um fato é de um outro gênero em relação ao fato mesmo; a interpretação inteligível ou dogmática é uma alegoria no sentido etimológico da palavra (aliogenos). Toda explicação é, nesse sentido, uma alegoria. A verdade entendida alegoricamente convida o seu ouvinte a segui-la. O sentido moral é o da livre resposta a esse convite, do empenho moral concreto mediante o qual aquele que crê se põe a seguir. Assim, o sentido moral orienta a ação para o futuro. Contudo, esse futuro está presente anagogicamente no ato de liberdade. Mediante a anagogia, se esclarecem os traços escatológicos do advento do Senhor, já aqui presente, porém não ainda plenamente.

6.

O Renascimento descobre o caráter humano da Bíblia e dialoga com a nascente pesquisa cientifica, desvinculado-a da tutela da instituição eclesiástica. Jimmy Sudário Cabral, num texto recém publicado contribui:

O século XVI caracteriza-se pela erupção das gramáticas, da lexografia e da grande tradução de textos da Antiguidade. A interpretação de caráter filológico do texto bíblico inaugura uma revolução na leitura da Bíblia agora gradativamente desvinculada das instituições eclesiásticas. Em sua maioria, os exegetas do Renascimento eram profundos conhecedores das línguas antigas e os textos bíblicos passam a ser analisados através de todo aparato científico e filológico. A exemplo do comentário crítico de Erasmo, ganha corpo a comparação do texto latino com o texto grego – Lutero aprendera com Erasmo que metanoia, que a Vulgata traduzia por poenitentiam agere (“faz penitência”), significava uma “reviravolta” de todo o ser cristão, e não significava confessar-se – e o corpus bíblico começa a ser problematizado, perguntando-se, assim, pela origem e autenticidade dos textos. A reconstituição histórica de um texto se torna regra de interpretação, demonstrando interesse em reconstituir o sentido literal e histórico, expressão de uma nova consciência histórica e filológica dos críticos do Renascimento. (Bíblia e Teologia política, 2009, 101-102)

O Sola scriptura revela o princípio de uma, aprentemente, nova teologia. Os argumentos históricos e filológicos contribuem para encontrar a verdadeira doutrina que se contrapunha a papas e concílios. A escritura, e somente ela, possuía a autoridade de palavra divina. A busca pelo sentido literal serve para encontrar a verdadeira mensagem da Bíblia. Quem governa tal busca não é a Igreja e sim a Razão.

Isso, porém, muito cedo se mostrou como problemático para os reformadores como Lutero. É, ainda, Cabral quem nos auxilia na reflexão:

Diante disso observou Lutero, (...) ‘quem dará à nossa consciência informação segura sobre quem está nos ensinando a pura palavra de Deus, nós ou nossos oponentes? Deve todo fanático ter direito de ensinar o que bem entende?’ Cientes da responsabilidade do controle institucional de uma nova cristandade que nascia no interior da Europa, os reformadores logo perceberam que, após a rejeição da peça central do arranjo estrutural da teologia clássica, a Igreja, guardiã das escrituras, deveriam agora buscar um rearranjo estrutural de poder que pudesse salvaguardar a estrutura hierárquica de interpretação, pois, como bradou Calvino, ‘se todos têm direito de ser juiz e árbitro nessa matéria, nada pode ser considerado certo, e toda a nossa religião estará cheia de incerteza’. O sensus literalis é, neste sentido, o lastro dogmático dos reformadores contra a Igreja Romana e toda a gama de intérpretes que se situa no espírito individualista do Renascimento. (Bíblia e Teologia política, 2009, 105-106)

A civilização moderna viu nascer um novo indivíduo - crítico e perguntador. A Igreja, ao seu modo, mesmo com as novidades propostas pela Reforma, manteve a Bíblia como instrumento de manutenção de cada coisa no seu devido lugar. O “sola scriptura” não é, ainda, uma libertação da Bíblia.

7.

Dois relevantes impactos a leitura bíblica até então dominante sofre entre o fim do século XIX e início do XX.

7.1)

O primeiro está associado as proposições de Charles Darwin, que demonstrou como, por meio de adaptação lenta, extremamente gradual, e de alterações produzidas de geração em geração, uma espécie podia produzir indivíduos diversificados. E como, com a passagem do tempo, algumas espécies permaneciam iguais e outras se transformavam. Tudo sob a regência da seleção natural, quem estivesse mais adaptado ao ambiente sobreviveria. Um quadro de progressão de complexidade biológica que culminou no homem, o mais sofisticado de todos os organismos. A explicação de Darwin sobre a origem da vida humana soou como uma ameaça a, até então predominante, explicação religiosa sobre o tema.

Na teologia judaico-cristã, Deus, exercendo seu infinito poder criativo, formou o Universo em seis dias e no sétimo descansou. Sempre através de palavras, no primeiro dia, ele fez a luz e separou o dia da noite; no segundo dia, criou o céu; no terceiro dia, a terra e o mar, as árvores e as plantas; no quarto dia, o Sol, a Lua e as estrelas; no quinto dia, os peixes e as aves; e, no sexto dia, os animais e o Homem, à sua imagem e semelhança.

Para muitos cristãos e judeus, os sete dias da criação do mundo, de que fala a Bíblia, devem ser entendidos literalmente, e isso se chocaria frontalmente às teses de Darwin.

A questão que se coloca, porém, é que a aparente oposição entre Evolucionismo e Criacionismo é falsa. E, nesse pormenor, os exageros de ambos os lados são nocivos. Nascia, assim, a origem de espécies conflitantes! De um turno, as espécies científicas; de outro, os espécimes religiosos!

De um lado, há a intransigência ignorante da Ciência, que se arvora a única explicação possível para tudo. Não há dúvidas que o avanço da Ciência seja o responsável pela melhoria na qualidade de vida humana ao longo dos tempos, mas não pode haver dúvida, também, que o espírito humano aspira mais do que números e lógica. Nossas indagações cotidianas não se satisfazem com as conclusões típicas da Ciência. As respostas científicas atendem às demandas da superfície da existência. O que está nas profundezas da alma requer algo diferente e mais consistente.

Por outro lado, está o fundamentalismo religioso que nega a inteligência humana e não consegue perceber o caráter simbólico da religião, bem como a natureza metafórica e mítica dos textos sagrados. O que há de mais profundo na religião é abafado pelos próprios detentores de tal discurso fundamentalista. Negam a profundidade da fé tentando fazê-la uma resposta ordinária ao lado das outras, ou melhor, maior e definitiva sobre as demais.

O problema é que tal visão de mundo não percebe que Religião e Ciência são discursos profundamente diferentes, mas não são conflitantes. A Ciência que se opõe a Religião extrapola seus limites e dá opinião sobre o que não conhece; a Religião que se opõe a Ciência não conhece profundamente a si mesma e ignora o espírito inventivo do ser humano, ou, pior, o considera mau!

7.2)

O segundo está relacionado ao desenvolvimento dos métodos histórico-críticos, que devolveram a Bíblia à história. Os avanços da arqueologia e da história das civilizações antigas favoreceram uma leitura até então inédita dos relatos bíblicos. A Bíblia na Modernidade passa a ser vista como literatura. O mundo é, por assim dizer, desencantado.

O desenvolvimento dessa análise científica da Bíblia fortalece a defesa da autonomia do ser humano diante de toda autoridade que não seja a razão.

Em outras palavras: por esta estar na história, o texto tem uma história, e explicar essa história do texto está na base da pesquisa histórico-crítica.

A crítica, porém, que cabe a abordagem histórico-crítica está na sua dependência de um paradigma historicista, fundado por uma concepção positivista da história que reduz o conhecimento aos aspectos estritamente racionais, desconsiderando outros fatores que estão presentes no processo de construção do saber científico.

O curioso é que a Modernidade provocou, ao mesmo tempo, reações muito distintas no seio da leitura bíblica. Se, por uma lado, se reagiu defensivamente com o Fundamentalismo, por outro, se agiu cientificamente com o desenvolvimento dos métodos históricos.

Ambos, todavia, bebem de uma fonte comum: o Positivismo.

O desafio que se coloca, por assim dizer, é resgatar a memória que fez os textos nascerem e devolver a Bíblia ao seu lugar existencial de origem: a história humana, o conflito das classes sociais, a luta por espaços e por dignidade.

8.

A hermenêutica bíblica latino-americana da libertação (a, assim denominada, leitura popular da Bíblia), tenta essa tarefa. Move-se entre a tradição crítica moderna e a tradição bíblica. Essa leitura tem sua inspiração em memórias subversivas que confrontam as instituições estabelecidas que se convertem em estruturas de violência, proclamando uma verdade canônica que oprime e silencia uma diversidade de expressões.

Uso-me, novamente, das palavras de Jimmy S. Cabral:

Como muito bem afirmou Karen Armstrong, ‘por terem as Escrituras se tornado uma questão tão explosiva, é importante ter clareza quanto ao que elas são e ao que elas não são’. Em sua revisão crítica e releituras bíblicas, a hermenêutica bíblica da libertação fez com que as ‘vacas sagradas’ (Bíblia, tradição, autoridade) fossem retiradas ‘dos pedestais que as imunizavam contra toda crítica’. (...) Redescobriu a Bíblia a partir da raça mestiça, negra, índia e empobrecida da América Latina, forjando uma teologia bíblica que tem os pés fincados no chão latino-americano, colocando como o eixo hermenêutico os pobres e sua real exploração que se mantém no ilimitado processo de naturalização da injustiça humana presentes nos preconceitos de classe, gênero e etnia. (...) Reconstruiu-se, assim, uma tradição que tem suas bases alçadas nas memórias de resistência dos deserdados da história, que se tornaram uma ‘fonte formidável de inspiração, uma arma cultural poderosa no combate presente’, que se armou em “sublevação revolucionária” contra todas as autoridades e hierarquias. (Bíblia e Teologia política, 2009, 177-179*).

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