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O Peso da Água e o Silêncio da Lama


Texto de Ricardo Lengruber Lobosco


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Em 2026, a tragédia completará quinze anos. Sabrina faria vinte e três anos. A mente insiste em traçar os contornos de um futuro que não houve: estaria ela hoje concluindo uma graduação? Estaria se formando, vestindo uma beca, sorrindo numa foto de celebração acadêmica? Essa linha do tempo foi brutalmente cortada, e a jovem adulta que ela jamais se tornou permanece soterrada sob a memória daquela noite.


Para compreender essa ausência, é preciso voltar ao momento da ruptura. A noite que uniu o dia 11 ao 12 de janeiro de 2011, na Região Serrana do Rio de Janeiro, não foi apenas uma passagem de tempo; foi uma cicatriz geológica e humana aberta na carne de Nova Friburgo. Estávamos no epicentro do que viria a ser classificado pela ONU como um dos 10 maiores deslizamentos de terra do mundo e a maior tragédia climática da história do Brasil. O firmamento desabou sobre sete municípios, despejando em poucas horas o equivalente a um mês de tempestades — quase 300 milímetros de água que converteram encostas em avalanches.


Não foi apenas a violência da tempestade final — aquela chuva derradeira, torrencial e devastadora —, mas a crueldade silenciosa das águas mansas dos dias anteriores. Havia uma insidiosa persistência naqueles chuviscos, uma teimosia úmida que encharcou a terra até o limite da saturação, preparando o solo para a sua própria ruína. A terra, embriagada de água, cedeu. A formação rochosa da região, o nosso "Maciço Fluminense", com seu manto de solo raso e raízes superficiais, tornou-se uma armadilha sobre a pedra lisa.


Quando a carga final se precipitou naquela madrugada, volumosa e desproporcional, a montanha não suportou. Houve centenas de rupturas simultâneas. O centro da cidade, o Córrego D’Antas, a Praça do Suspiro — cartões postais e lares humildes foram nivelados com a mesma indiferença brutal. A chuva possuía uma sonoridade desconhecida, um rugido tectônico que intimidou até a nós, serranos, habitantes do coração da Mata Atlântica. Os rios, violentados em seus leitos, transbordaram com uma fúria bíblica. Carros tornaram-se projéteis; casas, meros obstáculos de papelão.


Ao amanhecer, a cidade não apenas amanheceu; ela sobreviveu a um bombardeio. A luz do dia revelou a dimensão do abismo: uma paisagem lunar de lama marrom e destroços. E houve algo mais perturbador que a visão: o som, ou a ausência dele. Naquela manhã, os pássaros não cantaram. A mata, antes uma sinfonia de vida, emudeceu, como se a própria natureza, exaurida de sua fúria ou envergonhada do que perpetrara, guardasse um luto absoluto. Os números oficiais, frios e distantes, contariam nos dias seguintes 918 mortos na região, sendo 429 apenas em Nova Friburgo, além de quase cem desaparecidos que a terra jamais devolveu. Mas naquele momento, os números eram vizinhos, amigos, desconhecidos soterrados sob toneladas de detritos.


A tragédia não poupou sequer os guardiões. Naquela mesma madrugada, enquanto eu lutava no escuro, heróis fardados sucumbiam. Três bombeiros de Nova Friburgo — homens experientes, que haviam saído para salvar uma família soterrada — foram engolidos por um segundo deslizamento que soterrou sua viatura. Onde o Estado tentou chegar, a natureza impôs seu veto. Se aqueles talhados para o resgate pereciam sob a lama, que esperança restava para nós, civis atônitos?


E é aqui que a macro-história cede lugar à minha memória particular, feita não de estatísticas, mas de carne e culpa.


Eu era recém-chegado àquela casa, vizinha à escola da qual sou diretor. Meus filhos dormiam, alheios ao dilúvio. À uma da manhã, a campainha soou como um grito elétrico. Ao abrir a porta, encontrei a escuridão e o desespero de uma mulher. Era a vizinha, esposa do caseiro. O morro, em sua marcha inexorável, esmagara a casa dos fundos. Saí descalço, de short, vulnerável, mergulhando na escuridão sem luz, sem ferramentas, guiado apenas pela urgência.


O cenário era de uma geometria cruel. O telhado dissipara-se; a laje quebrara-se e tombara num ângulo agudo de 45 graus. Conseguimos resgatar a mãe e seu bebê. Mas, sob os escombros, estava Sabrina, uma menina de oito anos.


Aproximei-me. A água subia rapidamente, transformando a casa esmagada em um recipiente mortal, uma cisterna que se enchia de chuva e lama. Conversei com ela. "Qual o seu nome? Sabrina. Oito anos." O pé estava preso. Doía. A imperícia me paralisou. Eu e meu irmão, munidos apenas de desespero e mãos nuas, tentamos quebrar a alvenaria, mas éramos impotentes contra o concreto.


Minha memória daquela noite é fatiada, intercalada por lapsos de angústia. Eu conversei com ela. Tentei acalmá-la. Fui "civilizado" diante da barbárie. Hoje, a culpa me visita com a precisão de um relógio: eu deveria ter usado a força bruta? Deveria tê-la puxado, fraturado seu tornozelo, causado uma dor insuportável para arrancá-la daquele túmulo hidráulico? Mas eu hesitei. Na tentativa ingênua e humana de poupá-la da dor momentânea, deixei que o tempo — o bem mais escasso daquela noite — escorresse.


Foi o avô quem a tirou. Ele chegou atravessando a tempestade, um homem movido pelo instinto, e mergulhou naquele cenário dantesco. Mas quando o corpo de Sabrina emergiu, já estava inerte. A água fora mais rápida que a minha prudência.


A sequência dos fatos possui a lógica do absurdo. Levamos o pequeno corpo para a varanda. Uma vizinha enfermeira iniciou manobras de ressuscitação que se revelaram inúteis. Num último ato de desespero, corri para a escola ao lado em busca de um respirador. Acessei a administração, peguei as chaves, o equipamento. Liguei para um médico amigo que, do outro lado da linha, confirmou o óbito provável com a voz embargada.


Ao sair da escola com o equipamento inútil em mãos, ouvi um estrondo colossal às minhas costas. A escuridão rugiu. Minutos depois de eu ter passado pelo corredor administrativo, a encosta desceu sobre a escola. A ala onde eu estivera dois minutos antes foi varrida do mapa, reduzida a pó e ferro retorcido. Se eu tivesse me atrasado cento e vinte segundos, teria sido sepultado junto com os escombros da minha vida profissional. O acaso me salvou, mas não salvou Sabrina.


Voltamos à menina. Cobrimos o corpo. O socorro não veio. As ruas eram barricadas de lama intransponíveis.


Na manhã seguinte, o mundo havia mudado. Saí com minha motocicleta, vencendo a lama como quem atravessa um campo de batalha, em busca de um caixão, de uma autoridade. Encontrei um carro de bombeiros e ouvi a confissão do colapso: "A cidade é um caos. Há corpos por toda parte. Não temos como buscar essa criança agora. Cuidem dela". Era o retrato da falência institucional. Nos dias, meses e anos seguintes, veríamos a segunda tragédia: a da reconstrução. Veríamos milhões de reais destinados à recuperação desaparecerem em esquemas de corrupção, obras de contenção jamais finalizadas, políticos posando sobre a desgraça alheia e famílias vivendo do "aluguel social" por mais de uma década. A lama da corrupção provou-se tão perene quanto a da enchente.


Mas naquela manhã, a política ainda não importava. O que importava era a chegada dos pais de Sabrina. Eles vieram buscar os filhos que haviam deixado na segurança da casa dos avós. Encontraram o bebê salvo e Sabrina, imóvel, envolta em panos, sendo levada pelo carro dos bombeiros que finalmente chegara para recolher os mortos, e não mais para salvar os vivos.


Diariamente, a pergunta retorna, severa e sem resposta, ecoando sobre os dados frios da catástrofe: se fosse minha filha, eu teria tido a brutalidade necessária para salvá-la? Onde termina o limite do cuidado e começa a violência necessária para a sobrevivência? E, acima de tudo, que sentido habita em uma existência furtada tão cedo, uma vida ceifada antes mesmo de florescer, tragada pela indiferença da terra, da chuva e da negligência dos homens?


 
 
 

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