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A Educomunicação da Crise: Uma Autoetnografia da Gestão, da Docência e da Aprendizagem em Tempos Pandêmicos.


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INTRODUÇÃO

 

 

O Sujeito Polifônico: Uma Autoetnografia da Educação no Olho do Furacão

 

Não escrevo estas linhas a partir da segurança asséptica de um observador distante, nem do conforto analítico de quem examina a história pelo retrovisor. Escrevo ainda com a poeira dos escombros sobre os ombros, como quem tenta organizar a memória de um naufrágio enquanto ainda sente o balanço do mar. Sou Ricardo Lengruber Lobosco, e durante os longos meses em que a pandemia de COVID-19 suspendeu a normalidade do mundo, eu não fui apenas um indivíduo tentando sobreviver ao vírus. Fui, dentro das mesmas vinte e quatro horas e sob o mesmo teto, uma síntese viva e muitas vezes contraditória de todos os atores que compõem o complexo ecossistema educacional.

 

Minha experiência foi um amálgama de angústias e responsabilidades distintas. Fui o Gestor Privado, aquele que caminhou pelos corredores silenciosos de uma escola vazia, sentindo o peso físico de um patrimônio imobilizado e o peso moral de centenas de famílias e funcionários que dependiam de minhas decisões financeiras para subsistirem. Vi a receita despencar e as despesas enrijecerem, exigindo de mim uma frieza contábil que contrastava com o calor humano necessário para acolher uma comunidade amedrontada.

 

Simultaneamente, fui o Movimentador Público. Na presidência do Conselho Municipal de Educação, ocupei a "cadeira elétrica" da regulação. Tive que mediar a tensão insuportável entre a saúde pública e o direito à educação, arbitrando conflitos entre sindicatos, governo e sociedade civil. Ali, não era apenas o dono de escola que falava, mas o representante de um setor, obrigado a legislar sobre o incerto e a desenhar protocolos para o inimaginável, ciente de que cada parágrafo de uma resolução impactava milhares de vidas na rede pública e privada.

 

Mas a pandemia não me permitiu apenas o lugar do comando; ela me impôs a trincheira da sala de aula. Fui o Professor Universitário que viu o púlpito transformar-se em pixels. Tive que reinventar minha didática para falar com telas pretas, lutando contra a solidão de ensinar sem ver os olhos de quem aprende, buscando na tecnologia a ponte para manter acesa a chama do pensamento crítico em tempos de isolamento.

 

E, num exercício de humildade imposto pelo destino, fui também o Aluno. Já com doutorado e uma vida dedicada ao ensino, voltei aos bancos escolares — agora virtuais — como estudante de Direito. Senti na pele a vulnerabilidade do discente: a dificuldade de concentração, a ergonomia precária, a timidez diante da câmera e o esforço hercúleo para absorver uma nova epistemologia enquanto o mundo lá fora parecia desmoronar.

 

Por fim, e talvez acima de tudo, fui Pai de Aluno. Vi a escola invadir minha casa e transformar a mesa de jantar em sala de aula. Testemunhei o sofrimento silencioso de meus filhos adolescentes, privados do convívio, dos ritos de passagem e da liberdade, confinados a uma adolescência digitalizada.

 

Este testo é, portanto, o relato desse "fato social total". É a tentativa de organizar o caos de ter sido, ao mesmo tempo, quem cobra e quem paga, quem ensina e quem aprende, quem regula e quem é regulado. Nas páginas a seguir, convido o leitor a transitar por essas cinco personas, não como compartimentos estanques, mas como facetas de um mesmo prisma, refletindo sobre o que a pandemia nos tirou, o que ela nos ensinou e como a educação, em sua teimosa insistência, sobreviveu a nós mesmos.

 

Parte I. O Gestor Privado: A Sustentabilidade Institucional e a Liderança na Incerteza

 

1.1.  A Metamorfose Institucional: Do Presencial ao Remoto Emergencial

 

A suspensão abrupta das atividades presenciais, deflagrada pela crise sanitária global em março de 2020, impôs às instituições de ensino uma ruptura sem precedentes no continuum escolar. Para o gestor educacional, esse momento não representou apenas uma alteração logística, mas uma reconfiguração ontológica da escola. O prédio físico, historicamente o locus privilegiado da socialização e da aprendizagem — conforme defende a literatura clássica sobre cultura escolar —, viu-se subitamente esvaziado, exigindo uma transposição imediata dos processos pedagógicos para o ambiente virtual.

 

É imperativo, sob a ótica acadêmica, estabelecer a distinção conceitual entre o que foi implementado naquele momento e a Educação a Distância (EaD) tradicional. O que as escolas de educação básica vivenciaram enquadra-se no conceito de Ensino Remoto Emergencial (ERE). Enquanto a EaD pressupõe um planejamento prévio, design instrucional específico e materiais assíncronos elaborados para a autonomia do estudante, o ERE configurou-se como uma mudança temporária e urgente da instrução para um modo alternativo, devido a circunstâncias de crise. Tratou-se, portanto, de uma estratégia de redução de danos para a manutenção do vínculo escolar e a continuidade dos processos cognitivos.

 

Nesse cenário, a gestão escolar, à luz das dimensões propostas por Heloísa Lück, foi convocada a exercer uma liderança situacional e adaptativa extrema. O desafio não era homogêneo; a escola, em sua pluralidade, exigiu estratégias segmentadas para cada etapa da Educação Básica:

 

 * Na Educação Infantil: O desafio mostrou-se hercúleo, visto que as Diretrizes Curriculares Nacionais para esta etapa preconizam as interações e a brincadeira como eixos estruturantes. A transposição para o digital exigiu a elaboração de roteiros de atividades que transformassem os pais em mediadores diretos, focando na manutenção dos vínculos afetivos e no desenvolvimento sensório-motor, evitando a exposição excessiva às telas, contraindicada para a faixa etária.

 

 * No Ensino Fundamental e Médio: A estratégia demandou a implementação de Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVAs) e ferramentas de videoconferência síncronas. A gestão precisou orquestrar a capacitação docente em tempo real (just-in-time learning), transformando metodologias expositivas em dinâmicas de engajamento digital, enfrentando o desafio de manter a atenção de adolescentes em ambientes domésticos repletos de distratores.

 

Portanto, a “metamorfose institucional” não foi apenas tecnológica, mas cultural. O gestor atuou como o fiel da balança entre a rigidez das normativas estatais, a angústia das famílias despreparadas para a tutoria doméstica e a exaustão de um corpo docente compelido a reinventar sua práxis da noite para o dia. A escola sobreviveu não pela robustez de suas paredes, mas pela plasticidade de seus processos de gestão.

 

1.2.  A Gestão do “Espaço Vazio”: O Paradoxo da Infraestrutura Ociosa e a Arquitetura Digital

 

A interrupção das atividades presenciais impôs ao gestor escolar um paradoxo administrativo singular: a gestão de uma materialidade inoperante em paralelo à construção urgente de uma imaterialidade funcional. A escola, enquanto edifício, não é apenas um receptáculo de pessoas, mas um território simbólico e um ativo imobilizado que demanda manutenção contínua. O silenciamento dos corredores e o esvaziamento das salas de aula inauguraram o fenômeno do “espaço vazio”, uma infraestrutura física que, embora destituída de sua função social imediata, manteve intactas suas demandas de conservação e custos operacionais fixos.

 

Sob a ótica da administração de recursos materiais, o fechamento compulsório gerou um cenário de gestão de crise patrimonial. A entropia natural das edificações não obedece a decretos sanitários; infiltrações, desgastes elétricos e a necessidade de higienização persistiram. Contudo, as restrições de mobilidade e as normas de isolamento social impediram a entrada de equipes de manutenção, criando um passivo oculto de deterioração predial. O gestor viu-se, assim, na posição de guardião de uma estrutura fantasma, monitorando à distância um patrimônio sujeito à ação do tempo, sem a possibilidade de intervenção direta, o que elevou o nível de incerteza sobre as condições de retorno futuro.

 

Simultaneamente a esse zelo impotente pelo tangível, foi imperativo edificar uma nova infraestrutura: a digital. Se o prédio físico estava interditado, a “escola na nuvem” precisava ser erguida sobre alicerces tecnológicos robustos. Isso demandou uma realocação estratégica de recursos e competências. A gestão logística, outrora focada no fluxo de pessoas, merenda e segurança patrimonial, transmutou-se na gestão de servidores, licenças de software, segurança de dados (em conformidade com a emergente Lei Geral de Proteção de Dados – LGPD) e conectividade. O desafio gerencial consistiu, portanto, em equilibrar a sustentabilidade de um passivo físico oneroso e ocioso com o investimento agressivo em ativos digitais, essenciais para garantir a continuidade da prestação do serviço educacional em um ambiente desterritorializado.

 

1.3.  Engenharia Financeira e Resiliência: A Rigidez Orçamentária em Tempos de Volatilidade

 

A sustentabilidade econômica das instituições de ensino privado durante a crise sanitária configurou-se como um estudo de caso agudo sobre a gestão financeira em cenários de catástrofe. A estrutura de custos de uma escola possui uma idiossincrasia que a difere substancialmente de outros setores da economia: a alta rigidez de suas despesas operacionais. Conforme a literatura administrativa aponta, a educação é um serviço intensivo em capital humano. Na experiência vivenciada, a folha de pagamento dos profissionais — docentes e equipe técnica —, somada aos encargos tributários incidentes, representava mais de 80% do custo total da instituição. Trata-se de uma despesa fixa e incompressível, protegida por legislação trabalhista e necessária para a manutenção da qualidade pedagógica, independentemente da modalidade de ensino, seja ela presencial ou remota.

 

Em contrapartida a essa rigidez das despesas, a receita comportou-se com extrema volatilidade e tendência de queda vertiginosa. O impacto econômico da pandemia sobre as famílias gerou um efeito cascata imediato na gestão escolar, manifestando-se em duas vertentes destrutivas para o fluxo de caixa: a evasão escolar e a inadimplência. A evasão ocorreu, em muitos casos, pela incerteza quanto à validade do ano letivo ou pela impossibilidade financeira das famílias; a inadimplência, por sua vez, refletiu o déficit de renda nos lares, onde o pagamento das mensalidades escolares competia com a subsistência básica.

 

O desafio gerencial, portanto, não residiu apenas na administração da escassez, mas na execução de uma complexa engenharia financeira. Foi necessário equilibrar a manutenção integral dos postos de trabalho e o cumprimento das obrigações fiscais — garantindo que a escola continuasse operando e entregando o serviço educacional remotamente — enquanto a base de arrecadação sofria erosão diária. Diferentemente de uma indústria que pode interromper a produção para estancar custos variáveis, a escola não pode parar. A gestão financeira, nesse contexto, transcendeu a contabilidade tradicional para tornar-se um exercício de resiliência institucional, exigindo negociações individualizadas com as famílias e um malabarismo orçamentário para evitar a insolvência diante de um desequilíbrio estrutural entre receitas flexíveis e despesas rígidas.

 

1.4.  A Comunicação de Crise: Acolhimento e Mediação em Tempos de Instabilidade Coletiva

 

A gestão de uma instituição de ensino durante a crise sanitária exigiu o estabelecimento de um novo paradigma de interlocução com a comunidade escolar, fundamentado nos princípios da Comunicação de Crise e na gestão de stakeholders. Em um cenário marcado pela assimetria de informações e pela proliferação de incertezas — o que Manuel Castells denominaria de “sociedade em rede” sob tensão —, a escola deixou de ser apenas um espaço de prestação de serviços educacionais para converter-se em um ponto focal de estabilidade emocional e orientação social. A comunicação institucional, tradicionalmente informativa, precisou transmutar-se em uma comunicação empática, dialógica e, sobretudo, ágil, visando mitigar a angústia coletiva das famílias.

 

O cerne desse desafio residiu na mediação de conflitos que emergiram da sobreposição das esferas doméstica e escolar. Com a transferência da sala de aula para o interior das residências, as famílias assumiram uma postura de auditoria pedagógica em tempo real, gerando questionamentos sobre as metodologias do ensino remoto e a percepção de valor do serviço prestado. O gestor precisou atuar na reconstrução do contrato pedagógico, esclarecendo as limitações e as potencialidades do meio digital, e demonstrando que a mudança de modalidade não implicava redução do trabalho docente, mas sua intensificação. A estratégia de acolhimento demandou “escuta ativa” para diferenciar demandas pedagógicas legítimas da simples projeção de ansiedades parentais sobre a escola.

 

Simultaneamente, a mediação financeira exigiu um trato humanizado, transcendendo a frieza das cobranças administrativas. A negociação da inadimplência não pôde ser tratada sob a lógica cartesiana de credor e devedor, mas sob a ótica da parceria de longo prazo e da solidariedade mútua. As conversas sobre descontos e parcelamentos tornaram-se, frequentemente, espaços de desabafo sobre perdas familiares e desemprego. O sucesso da gestão nesse período dependeu da capacidade de comunicar transparência sobre a rigidez dos custos da escola (conforme discutido anteriormente), gerando empatia, ao mesmo tempo em que se oferecia suporte às famílias fragilizadas. A escola, assim, firmou-se não apenas como ente educador, mas como uma rede de apoio social, onde a clareza comunicacional atuou como ferramenta indispensável para a manutenção da confiança e da coesão comunitária diante do caos.

 

1.5. A Co-Gestão e a Ética do Cuidado: A Liderança Afetiva e a "Troca de Pneus em Voo"

 

A experiência da gestão escolar durante a pandemia não foi um ato solitário; foi um exercício de co-gestão e parceria, vivenciado intensamente na partilha de decisões com Maria Beethania Lengruber, sócia e codiretora da instituição. O relato dessa travessia conjunta, trazido por sua voz, revela que, para além das planilhas e decretos, a liderança precisou operar na dimensão do que a filosofia da educação chama de Ética do Cuidado (Nel Noddings). A narrativa da pandemia, vista sob essa ótica da parceria societária, expõe o terror inicial de um "fim de semana sem fim": a sexta-feira fatídica da suspensão das aulas, aonde a notificação chegou poucas horas após a despedida das crianças, lançando a gestão em um vácuo de orientação oficial.

 

Nesse cenário de desorientação, onde as autoridades de saúde e educação "não sabiam para onde olhar", a gestão escolar, personificada na atuação de Maria Beethania e sua equipe, precisou criar seu próprio norte. O "núcleo base" de crise foi estabelecido não por diretrizes externas, mas pela urgência interna de não abandonar a comunidade. A estratégia adotada foi a da "ação contínua": reuniões de manhã, tarde e noite para manter o corpo docente coeso. A gestão assumiu, então, uma função performática vital: a manutenção de um "tom de coragem" e credibilidade. Mesmo com "mãos e braços cansados" e assombrados pelo medo da doença e pelas notícias de óbitos de familiares de alunos, a direção precisou sustentar a bandeira da esperança, fingindo normalidade para que a estrutura emocional da escola não colapsasse.

 

A práxis dessa gestão emergencial foi marcada pela metáfora da "troca de pneus com o veículo em movimento". A escola não parou para se adaptar; ela se adaptou operando. Isso exigiu criatividade logística e sensibilidade humana extrema. Episódios marcantes narrados por Maria Beethania ilustram essa resiliência operacional:

 

  • A Alfabetização Compartilhada: A impossibilidade do presencial forçou a escola a treinar as mães dos alunos do 1º ano para serem co-alfabetizadoras, descentralizando o saber técnico para o ambiente doméstico.

  • A Materialidade do Afeto: A implementação do sistema de drive-in para a entrega de materiais físicos tornou-se um ritual de vínculo. Ver as carteiras vazias com os nomes dos alunos e os materiais organizados levou famílias às lágrimas na porta das salas, transformando a entrega de apostilas em um ato de manutenção do pertencimento.

  • A Humanização das Telas: A gestão incentivou práticas pedagógicas de "encantamento", onde professores usavam máscaras lúdicas ou até mesmo realizavam o "recreio virtual", lanchando em frente às câmeras para fazer companhia às crianças e aliviar, ainda que por minutos, a sobrecarga das famílias desestruturadas pelo confinamento.

 

Por fim, a sustentabilidade desse modelo apoiou-se em um lastro organizacional prévio. A decisão ética de não demitir nenhum funcionário, mesmo diante da queda vertiginosa das receitas e da necessidade de contrair empréstimos, reforçou o contrato moral da instituição com seus colaboradores. A co-gestão liderada por Maria Beethania operou, assim, entre o terror da "escuridão" noticiada e a "luz acesa" da vocação educadora, provando que a sobrevivência da escola dependeu tanto de sua solidez financeira quanto de sua capacidade de acolher a dor do outro enquanto escondia, estoicamente, o próprio medo.

 

 

Parte II. O Movimentador Público: Governança Democrática e Regulação

 

2.1. O Conselho como Ágora Virtual: Curadoria Intelectual e o Combate à Desinformação

 

A atuação na presidência do Conselho Municipal de Educação (CMENF) durante o interregno pandêmico exigiu a transposição de um espaço político fundamentalmente presencial e dialógico para a mediação tecnológica. O CME, por definição, constitui-se como uma esfera pública de controle social e deliberação, materializando o princípio constitucional da gestão democrática do ensino. No entanto, diante da crise sanitária e de um cenário nacional marcado pela desarticulação federativa e pela ausência de diretrizes claras por parte do Ministério da Educação, o Conselho precisou transcender suas funções burocráticas para assumir um papel de curadoria intelectual e estabilização institucional.

 

Não bastava normatizar o caos; era imperativo qualificar o debate público para combater o negacionismo e a desorientação pedagógica. Para isso, transformamos o Conselho em uma plataforma de formação continuada e cidadania, promovendo uma série de encontros virtuais que funcionaram como faróis em meio ao nevoeiro. Tive a honra de mediar diálogos com expoentes do pensamento educacional que nos ajudaram a fundamentar nossas decisões locais em ciência e filosofia. Gaudêncio Frigoto nos alertou que "não podíamos voltar à vida normal, porque a normalidade era o problema", enquanto Leonardo Boff trouxe a ética do cuidado e a "razão cordial" para o centro da gestão pública, defendendo uma democracia socioecológica.

 

Ouvimos também Cláudia Costin, que nos lembrou que a crise de aprendizagem brasileira precedia o vírus, e Zacarias Gama, que criticou a "pedagogia analógica" e nos orientou a repensar a avaliação para além da mera medição de conteúdos. André Lázaro reforçou a necessidade de políticas específicas para enfrentar a desigualdade, definindo a escola pública como a "máquina que prepara democracias". Esses encontros não foram eventos protocolares, mas atos políticos de resistência intelectual. Ao pautar a discussão local com base em evidências e teoria crítica, o Conselho firmou-se como um locus de produção de conhecimento, garantindo que as decisões regulatórias de Nova Friburgo não fossem apenas trâmites administrativos, mas pedagogicamente fundamentadas e socialmente legitimadas.

 

2.2. O Dilema Regulatório: O Abismo Digital e a Construção do PAPNP

 

A interrupção das aulas presenciais, formalizada pelo Decreto Municipal nº 506 em março de 2020, impôs um desafio regulatório sem precedentes: a necessidade de disciplinar o regime escolar em tempos de exceção, equilibrando o direito à educação e o direito à vida. A reação inicial do Conselho foi marcada pela agilidade normativa, culminando na Resolução CME 03/2020, que instituiu o comitê de planejamento responsável por desenhar a resposta educacional do município. A nossa prioridade foi construir um processo decisório legitimado antes de definir o conteúdo da política em si.

 

O maior obstáculo enfrentado não foi técnico, mas social: a materialidade brutal do "abismo digital" em nossa rede. Recusamos a transposição ingênua do ensino presencial para o online, pois sabíamos que isso excluiria a maioria dos estudantes. Para não legislar no escuro, realizamos uma pesquisa censitária com os docentes da rede municipal. Os dados foram chocantes e orientaram toda a nossa política subsequente: embora 99,4% dos professores estivessem tentando realizar atividades remotas, 48,4% dependiam exclusivamente de seus celulares pessoais para trabalhar e apenas 60% possuíam acesso à internet de banda larga fixa.

 

Esses dados tornaram-se a pedra angular do nosso Plano de Atividades Pedagógicas Não Presenciais (PAPNP), aprovado em julho de 2020. Optamos por uma estrutura dual baseada na equidade: a oferta universal e obrigatória de Cadernos Pedagógicos impressos, garantindo que o direito à educação chegasse aonde a conectividade falhava, enquanto o uso de plataformas digitais permaneceu como estratégia complementar. A regulação, portanto, operou sob a lógica da gestão de riscos e da redução de danos, configurando-se como um "contrato social de crise" desenhado para mitigar as desigualdades estruturais expostas pela nossa própria investigação.

 

2.3. A Tensão Público-Privada: O Embate do "Facultado" e a Defesa do Trabalhador

 

A presidência do Conselho por um representante do segmento privado, em meio a uma crise sistêmica, configurou um observatório privilegiado das tensões entre a administração pública e a realidade dos trabalhadores da educação. Esse conflito materializou-se de forma aguda durante a revisão do PAPNP em março de 2021, em torno de uma única palavra: "facultado". A Secretaria Municipal de Educação, pressionada por uma lógica gerencialista, defendia a retirada do termo para obrigar os professores a utilizarem as plataformas digitais, alegando que a facultatividade dificultara o trabalho no ano anterior.

 

Nesse momento, posicionei-me ao lado do princípio da legalidade e da defesa do trabalhador, em consonância com o Sindicato Estadual dos Profissionais de Educação (SEPE). O argumento era cristalino: se o Estado não provê os meios de trabalho — e nossa pesquisa provava que quase metade dos professores usava o próprio celular e dados móveis —, não poderia haver obrigatoriedade legal. O principal violador do direito à educação ali não era o professor individual, mas o poder público que falhou em prover a infraestrutura necessária.

A plenária do Conselho votou pela manutenção do termo "facultado" por 8 votos a 4. Essa vitória não foi apenas semântica; foi a afirmação de que a emergência sanitária não poderia servir de pretexto para o assédio moral ou a precarização do trabalho docente. O Conselho atuou, assim, como o fiel da balança, impedindo que a crise se convertesse em um estado de exceção trabalhista e reafirmando que a política pública deve ser construída com base na realidade material dos seus agentes, e não em aspirações administrativas desconectadas das condições de trabalho.

 

2.4. A Inflexão Trágica: A Reabertura no Auge da Morte e a Fragilidade da Governança

 

A resiliência institucional construída ao longo de 2020 encontrou seu limite trágico na mudança de gestão e de rumos políticos em 2021. Com a posse do novo governo municipal, testemunhei o desmonte do processo dialógico que havíamos consolidado. A reconstituição do Grupo de Trabalho de Protocolos por decreto, sem o devido diálogo prévio, sinalizou uma abordagem centralizadora que ignorava a construção coletiva anterior.

 

A decisão de autorizar o retorno gradual às atividades presenciais em maio de 2021 ficará marcada como o capítulo mais sombrio dessa trajetória. Sob a justificativa de uma suposta "pressão" do Ministério Público — que questionei abertamente em sessão plenária, por não haver ação judicial formalizada, mas apenas reuniões de bastidor —, a reabertura ocorreu, paradoxalmente, no momento epidemiológico mais crítico da cidade. Os dados são inquestionáveis: abril de 2021 foi o mês mais letal da pandemia em Nova Friburgo, com colapso nos cemitérios e bandeira roxa de risco muito alto. Maio seguiu como o segundo pior mês em número de óbitos.

 

Enquanto a ciência e os dados gritavam pelo isolamento, a decisão política forçou a abertura das escolas. Foi uma inversão completa da lógica de proteção à vida que havíamos defendido e sustentado tecnicamente no ano anterior. Aquele momento cristalizou a fragilidade das conquistas institucionais locais diante da vontade política e do esgotamento social. A reabertura naquele contexto não foi uma vitória da educação; foi a admissão trágica de que, no cálculo político daquele momento, a normalidade econômica e a pressão de grupos específicos valiam mais do que a segurança biológica da comunidade escolar. A experiência revelou que, sem uma priorização genuína da vida na agenda nacional, mesmo a governança local mais resiliente permanece vulnerável.

 

2.5. A Sinergia Executivo-Conselho: A Governança Dialógica e o Resgate do Ano Letivo

 

A governança da crise educacional em Nova Friburgo sofreu uma inflexão positiva determinante a partir de 1º de junho de 2020, com a posse do Prof. Marcelo Verly na Secretaria Municipal de Educação. Até aquele momento, a relação entre o Conselho e a pasta executiva era marcada por ruídos e pela dificuldade de construção coletiva, refletindo uma gestão "pouco afeta ao diálogo e à transparência", conforme diagnosticado pelo próprio gestor que assumia. A chegada de Verly não representou apenas uma troca de cadeiras, mas a instauração de um regime de colaboração institucional que se provaria vital para a sobrevivência do ano letivo.

 

O testemunho do ex-secretário lança luz sobre a complexidade dos bastidores daquele momento. Ao assumir a pasta, ele encontrou uma municipalidade que ainda não havia conseguido estruturar uma solução pedagógica robusta para o ensino remoto. Nesse vácuo, a atuação do Conselho deixou de ser vista como um entrave burocrático para ser reconhecida como um alicerce técnico e político. Verly destaca que a "intensa cooperação" e a "liderança estratégica" da presidência do Conselho foram fundamentais para romper a inércia. Estabeleceu-se, assim, um canal de diálogo permanente que incluiu não apenas a Secretaria e o Conselho, mas também o Fórum Municipal de Educação e o Sindicato dos Profissionais de Educação (SEPE), criando uma rede de governança participativa rara em tempos de centralização decisória.

 

O fruto mais palpável dessa sinergia foi a estruturação do Plano de Atividades Pedagógicas Não Presenciais (PAPNP). A validação desse documento pelo Executivo não foi um ato de submissão, mas de reconhecimento técnico. Segundo Verly, o "profundo conhecimento das legislações municipais, estaduais e nacionais" aportado pelo Conselho permitiu desenhar um plano que oferecesse segurança jurídica e pedagógica, motivando famílias e salvando o vínculo escolar. Mais do que isso, essa parceria blindou a rede municipal contra pressões externas irresponsáveis. Quando órgãos de controle pressionaram pelo retorno presencial ainda no segundo semestre de 2020, a Secretaria, amparada pelas deliberações do Conselho, conseguiu sustentar a posição de não retorno, fundamentada no "risco iminente de ampliação dos óbitos". A parceria entre o "Movimentador Público" (Conselho) e o Gestor Público (Secretaria) provou que, em tempos de catástrofe, a cooperação institucional é a única vacina contra o colapso administrativo.

 

2.6. A Memória Institucional e a Frente Sindical: A Equidade como Consenso

 

A narrativa sobre a gestão da crise no Conselho Municipal de Educação ganha sua dimensão histórica através do olhar de Ricardo Costa, decano do colegiado (membro desde 2007) e representante dos sindicatos de professores (Sinpro). Sua voz traz para a análise não apenas a urgência do momento, mas a perspectiva de quem acompanha a evolução das políticas públicas locais há quase duas décadas. Para ele, o período pandêmico não foi apenas um intervalo de exceção, mas "um dos momentos mais marcantes e importantes da criação do nosso Conselho", onde a instituição provou sua maturidade política e sua capacidade de proteção social.

O testemunho de Costa ilumina um aspecto crucial da nossa atuação: a construção do consenso em torno da equidade. Enquanto representante da categoria docente, ele destaca que a maior vitória política daquele período foi a constituição do Plano de Atividades Pedagógicas Não Presenciais (PAPNP) com foco nas famílias mais vulneráveis. A decisão estratégica pela distribuição de cadernos pedagógicos impressos — e não a imposição cega da tecnologia — foi a materialização da defesa da escola pública. Nas palavras dele, essa medida impediu que as crianças da rede municipal, carentes de acesso digital, ficassem "totalmente desamparadas", garantindo o recebimento dos saberes necessários à vida escolar sem violar a segurança sanitária do isolamento.

Além disso, o relato valida o Conselho como uma arena de resistência ética. Ricardo Costa descreve os debates virtuais como "bastante intensos", reforçando que a posição do colegiado foi firme em "evitar que se voltassem às aulas de forma precipitada" enquanto o risco à vida permanecia elevado. Sob a coordenação da presidência à época, o Conselho operou como um escudo, unindo a representação sindical e a sociedade civil em um "trabalho combativo". A experiência, segundo o atual presidente, demonstrou a vitalidade de um órgão que não se limitou a burocratizar o ensino, mas assumiu a vanguarda na promoção de políticas públicas que priorizassem, acima de qualquer pressão econômica, a integridade da comunidade escolar.

 

 

Parte III. O Professor: A Reinvenção da Práxis Docente e a Cibercultura

 

3.1. Do Púlpito à Tela: A Transposição da Oratória e a Crise da Preleção Acadêmica

 

A migração compulsória da sala de aula física para os ambientes virtuais de aprendizagem síncronos representou, para a docência universitária, uma ruptura epistemológica e performática radical. A cátedra, historicamente simbolizada pelo “púlpito” — o lugar elevado de onde emana o saber autorizado e a voz de comando —, foi subitamente achatada pela arquitetura bidimensional das plataformas de videoconferência. Nesse novo ecossistema, a figura do professor perdeu a centralidade física e a aura de autoridade conferida pelo arranjo espacial da sala de aula tradicional, vendo-se reduzida a uma janela em meio a um mosaico de ícones e avatares. Essa desterritorialização exigiu não apenas uma adaptação técnica, mas uma profunda revisão da identidade docente e da didática do ensino superior.

 

A oratória acadêmica, tradicionalmente fundamentada na retórica expositiva e na leitura de reações não-verbais dos discentes (a “leitura da sala”), entrou em colapso diante da interface digital. A aula expositiva de longa duração, sustentável no ambiente presencial pela dinâmica dos corpos e pela energia do recinto, revelou-se ineficaz e soporífera na mediação tecnológica. O professor universitário viu-se obrigado a fragmentar o discurso, adotando uma “pedagogia da brevidade” e da interatividade para disputar a economia da atenção do estudante, constantemente assediado por distratores domésticos e digitais. A performance docente precisou migrar da eloquência do discurso para a curadoria de experiências, onde a voz do mestre deixa de ser o único veículo de transmissão de conhecimento para tornar-se um fio condutor entre múltiplas mídias e recursos digitais.

 

Essa transição impôs, ainda, uma nova lógica de planejamento pedagógico. A improvisação, recurso muitas vezes utilizado por docentes experientes que dominam o conteúdo (“saberes experienciais”, na terminologia de Maurice Tardif), tornou-se um risco operacional no ambiente online. A aula remota síncrona demandou um design instrucional rigoroso, com roteirização detalhada dos momentos de fala, de interação e de uso de ferramentas tecnológicas. O planejamento deixou de ser um ato solitário de revisão de conteúdos para tornar-se um exercício de engenharia didática, visando mitigar a frieza do meio digital e promover o engajamento cognitivo. O professor, portanto, teve que se reinventar: de detentor do saber no púlpito, passou a ser um designer de aprendizagem na tela, navegando em águas desconhecidas onde a autoridade se constrói não pela posição, mas pela capacidade de manter a conexão — técnica e humana — ativa.

 

3.2. A Solidão Pedagógica: O Fenômeno das “Telas Pretas” e a Ruptura do Feedback

 

A transposição da docência para o ambiente virtual síncrono revelou um dos desafios mais angustiantes para a saúde mental e profissional do educador: a “solidão pedagógica” imposta pelo fechamento massivo das câmeras pelos estudantes. Esse fenômeno, caracterizado pela transformação da sala de aula vibrante em um mosaico estático de avatares, iniciais e nomes em fundos escuros, gerou uma profunda assimetria comunicacional. Na teoria da comunicação, o processo de ensino-aprendizagem é fundamentalmente dialógico e retroalimentado; a supressão da imagem do interlocutor rompe o loop de feedback visual, elemento vital para a regulação da prática docente em tempo real.

 

O professor, habituado à leitura contínua da linguagem não-verbal — o aceno de cabeça que indica compreensão, o franzir da testa que denota dúvida, ou o desvio do olhar que sinaliza tédio —, viu-se subitamente privado desses códigos semióticos essenciais. Sem essa “bússola” emocional e cognitiva, a aula converte-se em um monólogo cego, uma performance para o vazio, onde o docente precisa inferir o engajamento da audiência sem qualquer comprovação empírica imediata. Essa privação sensorial obriga o professor a despender uma energia psíquica muito superior à habitual para manter o entusiasmo e a cadência da exposição, gerando um desgaste emocional que a literatura recente sobre o tema já classifica como Zoom fatigue (fadiga do Zoom), exacerbada pela incerteza sobre a presença real e atenta do aluno do outro lado da conexão.

 

Além da questão técnica do feedback, o fenômeno das “telas pretas” atinge o cerne da identidade docente, que se constrói na relação com o outro. Conforme postula António Nóvoa, a docência é uma profissão de interações humanas intensas; quando a interação é reduzida à transmissão de voz e dados, ocorre uma desumanização do espaço pedagógico. O silêncio das câmeras e dos microfones cria uma sensação de isolamento profissional, onde o professor questiona, a todo instante, a eficácia de sua fala e a relevância de seu conteúdo. A aula, despida da troca de olhares e da espontaneidade do convívio, corre o risco de tornar-se um ato burocrático de entrega de conteúdo, exigindo do docente uma resiliência estoica para continuar “falando para as paredes” digitais, na esperança de que, na invisibilidade da rede, a aprendizagem esteja, de fato, ocorrendo.

 

3.3. Letramento Digital Docente: A Curva de Aprendizado Compulsória e a Cibercultura

 

A pandemia impôs ao corpo docente uma aceleração brutal no processo de apropriação tecnológica, transformando o que era, até então, um diferencial curricular ou uma ferramenta de apoio, em um pré-requisito existencial para o exercício da profissão. Este fenômeno não pode ser reduzido à mera instrumentalização técnica; trata-se de um processo complexo de letramento digital. Diferentemente da simples alfabetização tecnológica (o saber usar a máquina), o letramento implica a capacidade de mobilizar essas ferramentas para a produção de sentido e para a mediação pedagógica eficaz dentro de um novo ecossistema comunicacional. O professor, muitas vezes um “imigrante digital” na terminologia de Marc Prensky, viu-se compelido a colonizar o território da cibercultura, conforme descrito por Pierre Lévy, onde a técnica não é externa ao homem, mas constitutiva de novas formas de pensar e conhecer.

 

A curva de aprendizado enfrentada pelos professores foi íngreme e desprovida do tempo de maturação necessário para a assimilação reflexiva. A apropriação dos Ambientes Virtuais de Aprendizagem (AVAs) — como Moodle, Google Classroom ou Microsoft Teams — e das ferramentas de videoconferência ocorreu em regime de learning by doing (aprender fazendo). O docente precisou dominar, simultaneamente, a gestão da sala de aula (agora virtual), a curadoria de conteúdos multimídia e a operação de softwares complexos, muitas vezes lidando com a frustração da falha técnica em tempo real diante de uma audiência de “nativos digitais”. Essa demanda evidenciou uma lacuna na formação inicial e continuada de professores, historicamente focada nos saberes disciplinares e pedagógicos, em detrimento dos saberes tecnológicos.

 

Nesse contexto, emergiu a necessidade de desenvolver o que o modelo TPACK (Technological Pedagogical Content Knowledge) define como a intersecção entre o conhecimento tecnológico, pedagógico e de conteúdo. O professor descobriu que transpor a aula expositiva para o vídeo não era suficiente; era preciso compreender a gramática da internet. Isso envolveu aprender a linguagem hipertextual, a dinâmica da assincronicidade e a etiqueta digital (netiqueta). O letramento digital docente, portanto, foi forjado na urgência, exigindo uma postura de humildade intelectual para aprender, muitas vezes com os próprios alunos ou com pares, desconstruindo a figura do mestre infalível e inaugurando uma fase de docência mais colaborativa, experimental e tecnologicamente situada.

 

3.4. O Apagamento das Fronteiras: A Invasão do Espaço Doméstico e a Ubiquidade Laboral

 

A implementação do regime de trabalho remoto em caráter emergencial provocou a dissolução das fronteiras físicas e simbólicas que, desde a Revolução Industrial, demarcavam a separação entre a esfera laboral e a esfera da vida privada. A arquitetura social da modernidade, organizada na distinção clara entre o tempo de produção (fábrica/escritório/escola) e o tempo de reprodução e descanso (o lar), colapsou. Para o professor, essa ruptura significou a invasão do espaço doméstico pela dinâmica institucional. A casa, historicamente concebida como o locus da intimidade e do refúgio, foi colonizada pela lógica produtivista e pela presença virtual, porém intrusiva, de centenas de alunos e seus familiares através das telas.

 

O fenômeno do home office compulsório para a docência não se limitou a uma mudança geográfica; ele instaurou uma nova temporalidade caracterizada pela ubiquidade do trabalho. A tecnologia digital, que permitiu a continuidade do ensino, atuou também como um vetor de disponibilidade irrestrita. Aplicativos de mensageria instantânea e plataformas de gestão escolar tornaram-se canais de comunicação ininterruptos, corroendo o “direito à desconexão”. O tempo de trabalho expandiu-se para ocupar as noites e os finais de semana, criando uma sensação de prontidão permanente (always-on). Essa hiperconectividade gerou o que Byung-Chul Han descreve na “Sociedade do Cansaço”: uma autoexploração onde o sujeito, desprovido de limites externos claros, submete-se a uma jornada sem fim, resultando em exaustão psíquica.

 

Ademais, a sobreposição espacial gerou conflitos funcionais e ergonômicos agudos. O professor precisou converter a mesa de jantar em escrivaninha, o quarto em estúdio de gravação e a sala de estar em sala de aula, frequentemente disputando banda larga e silêncio com outros membros da família também em isolamento. A exposição da intimidade do docente — o cenário de fundo da câmera, os ruídos domésticos inevitáveis — vulnerabilizou a figura do educador, retirando-lhe a proteção institucional que o ambiente escolar físico oferece. O apagamento dessas fronteiras resultou em uma crise de identidade profissional, aonde não se “ia” mais para o trabalho, mas se “vivia” no trabalho, tornando impossível o distanciamento necessário para a recomposição mental e emocional exigida pela complexidade do ato educativo.

 

3.5. O Paradoxo Tecnológico: A Transposição Acrítica e a Promessa da Imersão

 

A experiência docente durante a pandemia revelou-se um fenômeno bifronte, habitando a tensão entre o que é imensamente promissor e o que é profundamente preocupante na educação mediada por tecnologia. De um lado, vislumbro o potencial democratizante e revolucionário das ferramentas digitais. A tecnologia provou ter o poder de romper barreiras geográficas, levando o saber universitário a lugares remotos que, de outra forma, permaneceriam à margem da academia. Olhando para o futuro, sou tomado por um otimismo técnico: acredito sinceramente que, com o aprimoramento da Inteligência Artificial, do aprendizado de máquina e da realidade imersiva, chegaremos a um ponto de excelência onde a sala de aula digital permitirá viagens por dentro do corpo humano ou visitas a outros planetas, oferecendo experimentações laboratoriais que a física da sala de aula tradicional jamais comportaria.

No entanto, essa promessa futurista colide com a realidade crua da "economia da atenção" e com o erro metodológico que marcou o período pandêmico. O processo de virtualização da educação foi realizado de forma açodada, imposto pela urgência, o que levou a uma prática pedagógica equivocada: a transposição acrítica do modelo presencial para o digital. Grande parte de nós, professores, sem o devido treinamento, tentou adaptar o know-how secular da educação tradicional — a preleção, o tempo, a postura — para um ecossistema que possui gramática própria (síncrona e assíncrona). Essa importação forçada de metodologias analógicas para o mundo virtual ignorou as especificidades do meio, contribuindo para experiências de aprendizado muitas vezes ineficientes e desprazerosa.

O resultado desse descompasso foi o agravamento do que chamo de "paradoxo da dispersão". A mesma tecnologia que oferece recursos infinitos oferece também estímulos infinitos para a distração. O cérebro humano, bombardeado por notificações e abas abertas, luta para manter a disciplina de "dedicação 100%" exigida pelo aprendizado profundo. O desafio docente, então, deixou de ser apenas a exposição do conteúdo para tornar-se uma batalha hercúlea pela atenção do estudante. Ensinar tornou-se um exercício de falar para o incerto, muitas vezes sem saber se havia alguém do outro lado da tela desligada, dependendo da empatia de poucos alunos "mais sensíveis" que abriam suas câmeras para validar nossa existência, enquanto tentávamos, tateando no escuro, fazer com que o aprendizado acontecesse em meio à dispersão generalizada.

 

 

Parte IV. O Aluno: Andragogia, Autonomia e a Experiência Discente

 

4.1. O Discente Maduro: A Andragogia e a Humildade do Eterno Retorno

 

A decisão de ingressar em uma terceira graduação, especificamente no curso de Direito, após a consolidação de uma trajetória acadêmica robusta — permeada por especializações, mestrado e doutorado —, situa-se no horizonte do que a literatura educacional contemporânea, inspirada no Relatório Delors para a UNESCO, denomina Lifelong Learning (aprendizado ao longo da vida). No entanto, a experiência de ocupar a posição de discente durante a pandemia revestiu-se de contornos singulares, transcendendo a mera aquisição de novos saberes técnicos. Tratou-se de um exercício sociológico de inversão de papéis e de uma vivência radical dos princípios da andragogia, a ciência que estuda a aprendizagem do adulto, conforme teorizada por Malcolm Knowles.

 

Diferentemente da pedagogia voltada à criança ou ao adolescente, onde a dependência do professor é estrutural, o “discente maduro” traz para a sala de aula — e, neste caso, para o ambiente virtual — um reservatório de experiências prévias que atua como filtro e alicerce para os novos conhecimentos. A condição de estudante de Direito, para alguém que já exerce a docência e a gestão educacional, exigiu um despojamento intelectual e uma postura de humildade epistêmica. Foi necessário silenciar a voz de autoridade, habituada a comandar e ensinar, para reativar a escuta ativa e a posição de aprendiz diante de uma nova epistemologia e de um novo léxico jurídico, operando uma suspensão temporária das certezas acumuladas em outras áreas do saber.

 

No contexto do ensino remoto emergencial, essa experiência foi amplificada pela barreira tecnológica. Se o adulto já enfrenta barreiras naturais no processo de aprendizagem (como a necessidade de aplicação prática imediata e a menor plasticidade para memorização mecânica), a mediação tecnológica inseriu uma camada adicional de complexidade. A adaptação ao ambiente virtual exigiu não apenas o esforço cognitivo para compreender os institutos jurídicos, mas também o letramento digital para navegar nas plataformas, submetendo o “aluno-doutor” às mesmas vulnerabilidades e ansiedades técnicas de seus colegas mais jovens. Essa vivência permitiu uma compreensão empírica das dificuldades do “outro lado do balcão”, revelando que a autonomia intelectual do adulto não o isenta da necessidade de mediação, acolhimento e clareza didática por parte de seus professores.

 

4.2. A Cooperação no Ambiente Virtual: A Empatia como Estratégia de Engajamento e a Presença Social

 

A experiência de ocupar a carteira discente, trazendo na bagagem a vivência da docência, permitiu uma leitura privilegiada e dolorosa do silêncio que frequentemente imperava nas salas de aula virtuais. Ao testemunhar o fenômeno das câmeras fechadas e a apatia interativa por parte dos colegas mais jovens, emergiu a compreensão de que a participação em aula, no contexto remoto, deixava de ser apenas um mecanismo de aprendizado individual para tornar-se um ato de solidariedade institucional e profissional. A teoria da Comunidade de Investigação (Community of Inquiry), desenvolvida por Garrison, Anderson e Archer, postula que o sucesso da aprendizagem online depende da intersecção entre presença docente, presença cognitiva e presença social. Nesse tripé, o papel do aluno experiente revelou-se crucial para sustentar a “presença social”, ou seja, a capacidade dos participantes de se projetarem social e emocionalmente no ambiente virtual.

 

Movido pela empatia de quem conhece a solidão de “falar para o vazio” (explorada no capítulo anterior), a postura adotada foi a de uma cooperação ativa e intencional. O ato de abrir a câmera e manter o microfone acessível não foi um mero cumprimento de protocolo, mas uma decisão política e pedagógica de validar o esforço do professor. Ao estabelecer contato visual e responder prontamente às indagações docentes, o objetivo foi romper a inércia do grupo e criar um “efeito de ancoragem”. Na dinâmica de grupos virtuais, a existência de ao menos um interlocutor ativo serve como um ponto de apoio para o professor, permitindo que a aula flua de um monólogo angustiante para um diálogo construtivo, ainda que restrito inicialmente a poucos participantes.

 

Essa cooperação no ambiente virtual também desempenhou uma função de modelagem para os demais estudantes. A participação qualificada, trazendo dúvidas pertinentes e conectando o conteúdo jurídico abstrato à realidade prática, buscou demonstrar que o ambiente remoto, apesar de suas limitações sensoriais, ainda comportava a construção dialógica do conhecimento. Tratou-se de um esforço para humanizar a tecnologia, lembrando à turma e ao professor que, por trás dos avatares estáticos, existiam sujeitos cognoscentes. A atitude colaborativa, portanto, transcendeu o interesse pessoal na nota ou na aprovação; configurou-se como uma ética do cuidado para com o processo de ensino, reconhecendo que a vitalidade da aula depende de uma co-responsabilidade entre quem ensina e quem aprende.

 

4.3. A Absorção de Conteúdo Complexo: Barreiras Epistemológicas e a Ausência da Imersão Ambiental

 

A incursão no universo jurídico, caracterizado por uma dogmática densa e uma hermenêutica própria, impôs um desafio cognitivo singular ao ser realizada integralmente no ambiente virtual. O aprendizado do Direito não se resume à assimilação de códigos e leis; trata-se da aquisição de uma nova gramática mental e de uma cultura profissional específica. Sob a perspectiva sociointeracionista de Lev Vygotsky, o desenvolvimento cognitivo superior é mediado socialmente. A construção do conhecimento ocorre na interação dialética com o meio e com os pares. No entanto, a mediação tecnológica, ao suprimir o ambiente físico da universidade — os debates de corredor, a atmosfera da biblioteca, a ritualística do tribunal simulado —, fragilizou os "andaimes" (scaffolding) necessários para a estruturação desse novo saber.

 

Para um estudante maduro, oriundo de outras áreas do conhecimento, o choque epistemológico foi exacerbado pela falta de imersão sensorial. A abstração dos conceitos jurídicos, quando transmitida exclusivamente pela tela bidimensional, perdeu a ancoragem contextual que a vivência presencial oferece. A sala de aula física atua como um espaço de contenção e foco, reduzindo a carga cognitiva extrínseca. No ambiente doméstico, a disputa atencional constante dificultou a "atenção profunda" exigida para a compreensão da lógica processual ou da teoria do delito. A ausência da "osmose acadêmica" — aquele aprendizado tácito que ocorre pela simples convivência no campus — obrigou o estudante a um esforço redobrado de autodisciplina para transformar informação digital em conhecimento estruturado.

 

Ademais, o ensino remoto de conteúdos complexos evidenciou as limitações da transposição didática tradicional. A complexidade do Direito, muitas vezes ensinada através da retórica magistral, encontrou barreiras na frieza do vídeo. A dúvida, que no presencial se resolve em um tête-à-tête rápido com o professor ou no cochicho com o colega ao lado (a zona de desenvolvimento proximal em ação), no virtual transformava-se frequentemente em uma lacuna de entendimento acumulada. A experiência demonstrou que a absorção de um novo paradigma científico à distância exige não apenas intelecto, mas uma gestão emocional robusta para lidar com a sensação de isolamento epistemológico, onde o aluno precisa construir, muitas vezes solitariamente, as pontes de sentido que o ambiente escolar presencial ofereceria naturalmente.

 

4.4. A Autodisciplina: A Gestão da Autorregulação e a Erosão das Rotinas

 

A transição para o ensino remoto impôs ao estudante a necessidade premente de desenvolver o que a psicologia educacional, notadamente através dos estudos de Barry Zimmerman, define como Autorregulação da Aprendizagem (Self-Regulated Learning). No modelo presencial tradicional, a disciplina é, em grande medida, exógena: ela é ditada pela arquitetura da escola, pelos horários rígidos das aulas, pela presença física do professor e pela vigilância dos pares. Ao migrar para o isolamento do ambiente doméstico, esses mecanismos externos de controle se dissiparam, transferindo para o indivíduo a responsabilidade integral pela gestão de seu tempo e de seus processos cognitivos. A autonomia, celebrada por Paulo Freire como fim último da educação, apresentou-se aqui não como uma conquista emancipatória gradual, mas como um imperativo de sobrevivência acadêmica em um cenário adverso.

 

A materialidade dessa mudança manifestou-se na perigosa proximidade entre o espaço de descanso e o espaço de trabalho. A descrição da rotina — acordar minutos antes do início da aula, transitar da cama para a mesa de estudos situada a poucos metros (ou, por vezes, assistir à aula da própria cama) — ilustra o colapso dos rituais de passagem que preparam o cérebro para a atividade intelectual. A ausência do deslocamento físico, que outrora servia como um hiato temporal para a transição mental entre o "eu doméstico" e o "eu estudante", resultou em uma continuidade letárgica. A falta de separação física favoreceu a intrusão do sono, da apatia e da procrastinação no tempo que deveria ser dedicado à absorção de conteúdos densos do curso de Direito.

 

Para superar essa entropia doméstica, foi necessário instaurar um regime de autodisciplina rigoroso, quase militar. A gestão do aprendizado exigiu a criação artificial de rotinas: vestir-se como se fosse sair, definir horários rígidos para leitura e desconectar-se das distrações digitais paralelas. O desafio residiu em manter o foco atencional ("atenção sustentada") em um ambiente repleto de gatilhos de dispersão e desprovido da pressão social da sala de aula. A experiência evidenciou que a modalidade remota, embora flexível, é impiedosa com a desorganização. O sucesso acadêmico nesse contexto dependeu menos da inteligência fluida e mais da capacidade das funções executivas de inibir impulsos e manter a meta de aprendizagem ativa, provando que a liberdade do ensino online cobra um alto preço em termos de maturidade e autocontrole.

 

Parte V. O Pai de Aluno: Família, Escola e Saúde Mental na Adolescência

 

O capítulo final aborda a Psicologia do Desenvolvimento e a Relação Família-Escola. É o momento de humanizar os números da pandemia através da observação do microcosmo familiar.

 

5.1. A Escola dentro de Casa: A Desterritorialização da Sala de Aula e a Colonização do Lar

 

A pandemia de COVID-19 precipitou um fenômeno sociológico que Zygmunt Bauman, em sua análise sobre a modernidade líquida, já prenunciava: a dissolução das fronteiras sólidas entre as diferentes esferas da vida. Para a família com filhos em idade escolar, especificamente adolescentes no Ensino Médio, essa dissolução materializou-se na invasão do espaço doméstico pela instituição escolar. A casa, antropologicamente definida como o locus da privacidade, do descanso e da intimidade familiar, foi subitamente colonizada pela lógica pública da escola. A sala de estar, a mesa de jantar e os quartos transformaram-se em extensões precárias do ambiente acadêmico, exigindo uma reconfiguração não apenas do mobiliário, mas da dinâmica relacional da família.

 

Essa sobreposição espacial gerou uma crise de identidade no ambiente doméstico. A escola, ao adentrar a residência via fibra óptica, trouxe consigo suas normas, horários, demandas de performance e, crucialmente, o olhar externo (através das câmeras), transformando o refúgio privado em uma vitrine pública vigiada. Para o pai de aluno, gerir essa "escola intrusa" significou mediar conflitos territoriais diários — disputas por banda larga, por silêncio e por espaços adequados —, tentando emular uma atmosfera de seriedade acadêmica em um ambiente desenhado para o convívio informal.

 

Contudo, o impacto mais profundo dessa desterritorialização incidiu sobre a experiência social dos adolescentes. A escola física desempenha um papel insubstituível na sociabilidade juvenil e na construção da identidade autônoma, longe do olhar parental. Para os jovens no Ensino Médio, a escola é, sobretudo, o espaço dos "ritos de passagem", do encontro com a alteridade e do pertencimento ao grupo de pares. O confinamento suprimiu o intervalo, a conversa de corredor, o esporte coletivo e o flerte, reduzindo a experiência escolar à instrução cognitiva pura. Essa amputação da dimensão socializadora da escola transformou o lar em uma "instituição total" temporária, onde as funções de vigiar, educar, alimentar e entreter se fundiram, gerando uma claustrofobia emocional e privando os filhos dos rituais essenciais de separação e individuação típicos da adolescência.

 

5.2. A "Sala de Aula ao Lado da Cama": Apatia, Ergonomia e a Perda dos Rituais de Transição

 

A materialidade da experiência escolar remota para o adolescente configurou-se, frequentemente, em uma arquitetura do imobilismo, simbolizada pela contiguidade perigosa entre o leito de repouso e a estação de estudo. A "sala de aula ao lado da cama" não é apenas uma descrição espacial, mas uma metáfora para o colapso dos limites ergonômicos e psicológicos que sustentam a prontidão para o aprendizado. Do ponto de vista da psicologia ambiental, os espaços físicos carregam "pistas" (cues) que condicionam o comportamento humano; o quarto de dormir, codificado cultural e neurologicamente para o relaxamento e a intimidade, revelou-se um ambiente inóspito para a vigília intelectual exigida pelo Ensino Médio. A fusão desses espaços gerou uma confusão de estímulos, onde a gravidade do colchão competia deslealmente com a exigência cognitiva da tela, favorecendo posturas corporais inadequadas e uma atitude de letargia crônica.

 

A supressão do deslocamento físico — o trajeto entre a casa e a escola — representou a perda de um ritual de transição fundamental. O ato de percorrer a cidade não cumpre apenas uma função logística, mas psíquica: é o tempo necessário para a mudança de "chave mental" entre o papel de filho (no ambiente doméstico) e o papel de aluno (no espaço público). Sem esse hiato temporal e espacial, o adolescente foi privado da preparação neurobiológica para o enfrentamento do dia letivo. Acordar minutos antes da primeira aula, muitas vezes assistindo-a ainda em trajes de dormir ou recostado, resultou em uma presença espectral, caracterizada por uma baixa ativação cortical e uma apatia comportamental que a literatura médica associa à desregulação dos ciclos circadianos.

 

Essa dinâmica favoreceu o surgimento de uma "atonia pedagógica". Observar os filhos nesse contexto foi testemunhar um processo de definhamento da vitalidade juvenil típica da fase escolar. A falta de exposição à luz solar matinal, a ausência de movimento físico e o confinamento em um ambiente monótono exacerbaram a tendência natural do adolescente ao atraso de fase do sono, invertendo o dia pela noite. O quarto, transformado em bunker multifuncional, tornou-se um cenário de confinamento (à la Bauman, onde a segurança vira prisão), gerando um cansaço paradoxal: uma exaustão que não advém do esforço físico, mas da falta de variedade sensorial e da imobilidade forçada, comprometendo severamente a capacidade de engajamento e o entusiasmo pela descoberta intelectual.

 

5.3. Saúde Mental e Adolescência: O Luto do Social e a Mediação Parental

 

A interdição da sociabilidade presencial, imposta pelas medidas de contenção sanitária, incidiu de maneira particularmente severa sobre a adolescência, etapa do desenvolvimento humano caracterizada, na psicologia evolutiva, pela transição da dependência familiar para a autonomia social. À luz da teoria do desenvolvimento psicossocial de Erik Erikson, o adolescente atravessa o conflito "Identidade versus Confusão de Papéis", processo no qual a interação com os pares (o grupo de iguais) é o vetor fundamental para a construção da autoimagem e a validação comportamental. O confinamento doméstico forçado operou, portanto, contra a natureza biológica e social dessa fase, gerando o que se pode denominar de "luto do social". O quarto do adolescente, outrora refúgio de privacidade, transformou-se em cela, sala de aula e única praça pública possível, colapsando as esferas da vida em um confinamento espacial que exacerbou sentimentos de apatia, ansiedade e solidão.

 

Do ponto de vista clínico e sociológico, observou-se o surgimento de uma "sindemia" de saúde mental paralela à crise viral. A supressão dos ritos de passagem e a virtualização das relações afetivas impuseram aos jovens uma sobrecarga cognitiva e emocional. A exposição excessiva à autoimagem nas telas de videoconferência desencadeou ou agravou quadros de dismorfia e insegurança, fenômeno contemporaneamente discutido como "Zoom Dysmorphia". A escola, ao invadir a casa via tela, perdeu sua função de espaço transicional (conceito winnicottiano) onde o jovem experimenta a vida fora do olhar parental. A ausência do deslocamento físico e do encontro espontâneo nos corredores privou o cérebro adolescente dos estímulos dopaminérgicos advindos da interação social real, resultando em um estado de letargia e desmotivação acadêmica que não pode ser confundido com mera indisciplina.

 

Nesse cenário de fragilidade psíquica, o papel dos pais sofreu uma reconfiguração dramática. De provedores e figuras de autoridade, os genitores foram convocados a atuar como "contentores emocionais" e mediadores pedagógicos de última instância. A família precisou absorver as angústias que antes eram diluídas na convivência escolar. Aos pais coube a tarefa hercúlea de regular o uso de telas — ferramenta paradoxal que era, ao mesmo tempo, o único vínculo com o mundo externo e a fonte de ansiedade —, monitorar o ciclo vigília-sono desregulado e oferecer suporte terapêutico cotidiano, muitas vezes enquanto lidavam com seus próprios lutos e instabilidades profissionais. A saúde mental do adolescente, portanto, tornou-se um barômetro da resiliência familiar, exigindo uma parentalidade ativa, empática e vigilante para mitigar os danos de um isolamento que suspendeu o tempo cronológico da juventude.

 

5.4. A Empatia Multifacetada: A Convergência dos Papéis e a Humanização da Crise

 

A vivência simultânea e intensa das posições de gestor educacional, professor universitário, estudante de Direito e pai de adolescente configurou uma experiência autoetnográfica singular, permitindo uma compreensão holística — ou complexa, na acepção de Edgar Morin — da crise educacional. A separação estanque entre esses papéis, comum em tempos de normalidade, dissolveu-se diante da onipresença do fato pandêmico. Essa sobreposição funcional não gerou apenas ruído, mas possibilitou o desenvolvimento de uma "empatia multifacetada" ou sistêmica. A dor de cada segmento do ecossistema escolar foi sentida na própria pele, não como um dado estatístico ou um relato de terceiros, mas como uma vivência incorporada e cotidiana.

 

Como pai, ao testemunhar a angústia do filho diante da tela preta e a dificuldade de concentração no ambiente doméstico, foi possível desconstruir a visão simplista do gestor que cobrava engajamento e resultados. A inadimplência das famílias, antes vista sob a ótica fria do fluxo de caixa institucional, ganhou a face humana do desespero financeiro compartilhado. Inversamente, a experiência como gestor, lutando para manter a folha de pagamento e a estrutura da escola de pé, permitiu uma interlocução mais honesta e transparente com a escola do filho, compreendendo que a manutenção das mensalidades era vital para a sobrevivência do serviço. Como aluno, sentindo o peso do isolamento e a tentação de desligar a câmera, o julgamento do professor sobre a "turma desinteressada" foi substituído pela compaixão pedagógica. A compreensão de que o silêncio do aluno não era necessariamente desrespeito, mas muitas vezes exaustão ou vergonha do ambiente doméstico, transformou a prática docente.

 

Essa empatia circular tornou-se a principal ferramenta de navegação na incerteza. Ela permitiu que as decisões gerenciais fossem tomadas com maior sensibilidade social; que as aulas fossem planejadas com maior flexibilidade e acolhimento; e que a paternidade fosse exercida com menor cobrança por desempenho e maior foco na saúde mental. A crise revelou que a escola não é uma ilha, mas um nó em uma rede de interdependências. A capacidade de transitar por essas diferentes perspectivas evidenciou que, em tempos de catástrofe, a rigidez dos papéis sociais deve ceder lugar a uma ética do cuidado mútuo. A "empatia multifacetada" foi, em última análise, o recurso que impediu o colapso dos laços humanos, demonstrando que a solução para os dilemas da educação não reside apenas na técnica ou na tecnologia, mas na capacidade profunda de reconhecer a vulnerabilidade do outro como espelho da própria vulnerabilidade.

 

5.5. A Voz do Filho: Tédio, Privilégio e a Percepção Discente da Resiliência

 

A autoetnografia, enquanto método, estaria incompleta se se restringisse à voz monológica do pai-pesquisador. Para compreender a profundidade do fenômeno escolar doméstico, é imperativo abrir escuta para o sujeito central desse processo: o aluno. Meu filho mais novo, Augusto, que atravessou a fronteira simbólica entre o Ensino Fundamental (9º ano em 2020) e o Ensino Médio (1ª série em 2021) confinado em seu quarto, oferece um testemunho que serve como contraponto lúcido às angústias parentais e gerenciais descritas anteriormente.

 

Seu relato, despido de tecnicismos acadêmicos, captura com precisão cirúrgica a atmosfera psíquica daquele período:

 

"Meu nome é Augusto, eu cursei o 9º ano em 2020, 1ª série, 2021. Acho que pra mim o mais difícil foi manter a atenção nas aulas e, de uma forma geral, o comprometimento com os estudos durante a pandemia. Mas acho que apesar de ter sido um momento em que eu deixei de aprender determinadas coisas dentro da escola, eu também aprendi umas outras coisas que acho que eu normalmente não aprenderia.

Acho que foi um momento bom pra analisar umas outras partes da vida, que não só a escola e os estudos, mas enfim. Pra mim não foi uma sensação muito boa, mas também com certeza poderia ter sido muito pior. Eu já tinha muito conforto de vida, de uma forma geral, então apesar do sentimento não ter sido bom, não foi uma experiência traumatizante.

Foi mais entediante, por ter que esperar isso tudo acabar, não tinha muito o que fazer dentro de casa, as coisas ficavam meio repetitivas e tal. Sobre a escola, de novo, eu acho que os professores foram muito resilientes, se adaptaram bem rápido. Conseguiram manter ali a ordem, não só os professores, mas os coordenadores, diretores, enfim."

 

A fala de Augusto ilumina três dimensões fundamentais para a nossa análise:

 

  1. A Pedagogia do Tédio versus o Trauma: Ao descrever a experiência como "entediante" e "repetitiva", mas não "traumatizante", Augusto demonstra uma consciência aguda de sua posição de classe. O "conforto de vida" mencionado atenuou o impacto da tragédia coletiva, transformando o horror sanitário lá fora em um ennui (tédio existencial) do lado de dentro. Para o pai e gestor, isso reforça a tese de que a pandemia foi vivida de formas radicalmente desiguais; para ele, o isolamento foi um hiato de espera, não uma luta pela sobrevivência.

 

  1. O Currículo Oculto da Pandemia: A admissão de que "deixou de aprender determinadas coisas" (conteúdos formais) mas "aprendeu umas outras coisas" (saberes da vida) valida a ideia de que a escola não parou, ela apenas se deslocou. O confinamento impôs um currículo não escrito de introspecção e resiliência, forçando o adolescente a "analisar outras partes da vida". Houve, portanto, uma perda cognitiva curricular, compensada por um ganho de maturidade reflexiva.

 

  1. O Reconhecimento da Resiliência Institucional: Talvez o ponto mais tocante para o pai-gestor seja a percepção do filho-aluno sobre a escola. Ao reconhecer que professores e diretores "foram muito resilientes" e "se adaptaram rápido", Augusto valida o esforço hercúleo descrito nos primeiros capítulos deste livro. O olhar do estudante não é apenas crítico quanto à sua própria dificuldade de atenção, mas empático quanto ao esforço da instituição em "manter a ordem" em meio ao caos.

 

 

Este depoimento encerra o capítulo da família não com uma conclusão fechada, mas com a serenidade de quem sobreviveu. Ele nos lembra que, sob os escombros da rotina escolar e diante do tédio das telas, nossos jovens estavam, à sua maneira silenciosa, elaborando sentidos, reconhecendo privilégios e valorizando, talvez pela primeira vez, a estrutura que a escola lhes oferecia.

 

Conclusão e Síntese: O “Fato Social Total” da Pandemia

 

Epílogo: O Legado da Cicatriz e a Urgência da Escola Porosa

 

Ao fechar as cortinas desta reflexão multifacetada, percebo que a experiência de ter sido, a um só tempo, gestor, regulador, docente, discente e pai, não me conferiu apenas cicatrizes, mas uma lente panorâmica rara. O vendaval sanitário que varreu o mundo não foi um mero parêntese na história da educação; foi um catalisador que acelerou o futuro e expôs, sem anestesia, as vísceras de um sistema que já caminhava no limite. Ao olhar para frente, recuso-me a subscrever a nostalgia de um "retorno ao normal", pois o normal era, em muitos aspectos, a cegueira para as assimetrias que a pandemia escancarou.

 

A grande inovação que o futuro nos exige não é tecnológica, é humana e territorial. A lição que extraio dessas cinco vidas que vivi é que a escola do futuro precisa ser, conceitualmente, uma Escola Porosa.

 

A pandemia implodiu as muralhas que separavam o tempo de aprender do tempo de viver. Como gestor e pai, vi a escola invadir a casa; como professor e aluno, vi a intimidade invadir a aula. O desafio vindouro não é reconstruir esses muros, mas gerir essa permeabilidade. A educação que se avizinha não pode mais se encerrar nos limites físicos do prédio escolar, nem pode ignorar a ecologia doméstica e emocional de seus atores. A "Escola Porosa" é aquela que entende que a aprendizagem acontece em fluxo contínuo, atravessando as telas, a mesa de jantar e a ágora pública.

 

No entanto, essa permeabilidade traz desafios brutais que exigirão coragem política e pedagógica:

  1. O Desafio da Curadoria Humana: Como professor e aluno, aprendi que o conteúdo é ubíquo e barato; a mercadoria escassa do século XXI é a presença. O futuro da docência não está na transmissão de dados, mas na curadoria de experiências e no vínculo. A tecnologia, por mais sofisticada que seja, provou-se incapaz de replicar o "olho no olho" que valida a existência do outro. O desafio será usar o digital para informar, mas resgatar o presencial para formar e humanizar.

  2. A Sustentabilidade como Ética: Como gestor privado e conselheiro público, vi a fragilidade econômica das instituições. O futuro exige novos modelos de financiamento e governança que protejam a educação das intempéries do mercado. A escola não pode ser gerida como uma fábrica de peças, pois sua matéria-prima é a esperança humana, e esta não cabe em planilhas de custo fixo. Precisamos de um pacto social que blinde a escola, pública ou privada, garantindo que ela seja um porto seguro, e não mais uma fonte de ansiedade financeira.

  3. A Pedagogia da Autonomia Radical: Como aluno maduro e pai de adolescentes, percebi que nosso sistema falhou em ensinar a aprender a aprender. Criamos alunos dependentes da vigilância presencial. O futuro exige uma andragogia precoce: precisamos formar estudantes capazes de autogestão, de disciplina solitária e de resiliência cognitiva. A autonomia não pode ser um luxo de pós-graduandos; deve ser a competência basal desde o ensino fundamental.

 

Eu, Ricardo Lengruber Lobosco, encerro este relato transformado. A pandemia me ensinou que a educação é um ato de resistência. Resistência contra a ignorância, contra o vírus, contra a falência e contra o isolamento. O futuro não pertence aos tecnocratas, nem aos pessimistas. Pertence aos educadores anfíbios, capazes de transitar entre o mundo físico e o digital, entre a gestão e a sala de aula, entre a razão de estado e o coração de pai.

 

Saio desta crise com a certeza de que as telas podem conectar dados, mas apenas a escola — em sua nova, porosa e desafiadora configuração — é capaz de conectar destinos. Que tenhamos a sabedoria de não esquecer o silêncio dos corredores vazios, para que possamos valorizar, com renovada intensidade, o ruído sagrado da vida que volta a ocupá-los.

 
 
 

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