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RUBEM ALVES


RUBEM ALVES Hoje faz três anos que ele faleceu. Lembro-me do dia de sua partida com um misto de sentimentos. Foi muito triste - semelhante ao que já senti com a partida de pessoas da família. Minha proximidade com o Rubem era espiritual. Dessas que a gente alimenta por pura comunhão de ideias, reflexões, críticas, inquietações e dores. Li as coisas que o Rubem escrevia desde a adolescência. E, por orientação dele, descobri um universo inteiro: literatura, cinema, filosofia, poesia, música e, claro, teologia. Teologia libertadora. Por causa dele, por comungarem de coisas em comum, conheci meus melhores amigos. E a vida me foi pródiga: conheci pessoalmente o Rubem. Dialogamos. Reclamamos. Brincamos. Bebemos. Comemos. Conspiramos. Foi ele quem me incentivou a publicar meu primeiro livro. E me deu a honra de escrever seu prefácio. O Rubem deixou um legado maravilhoso. Na foto abaixo, o Rubem brincava com o Miguel, meu filho - ele adorava as crianças. Espero que meus filhos aprendam também a gostar dele e das ideias pelas quais ele viveu. Deixo aqui, o texto do prefácio ao meu livro A Escola em que (des)acredito; uma espécie de sacramento que ele deixou para mim.

SOBRE LER E COMER

Rubem Alves

(Prefácio ao Livro de Ricardo Lengruber. A escola em que (des)acredito. Mauad. 2009.) O vidente do livro de Apocalipse sabia que os livros devem ser comidos. Aprendeu isso de um anjo que, ao lhe dar um livrinho, ordenou-lhe comê-lo. Mesmo sem ser anjo eu quero convidar você a comer esse livrinho, preparado pelo Ricardo Lengruber Lobosco. Eu já o provei e aprovei. E quero que você tenha o mesmo prazer que eu tive. Tudo o que é inteligente tem gosto bom.

É escrito num estilo leve, claro, flui sem tropeções, digestão fácil. Não é preciso fazer força para entender. Até mesmo quando a gente não concorda com a idEia do autor. Mas não concorda por razões claras, o que faz bem à inteligência.

O ato de ler, em si mesmo, pode emburrecer. Aprendi isso lendo Schopenhauer, num curto texto sobre o ler e o escrever. Ele chama a atenção do leitor para o fato de que, para ler um livro, é preciso parar de pensar os próprios pensamentos. É preciso que os pensamentos que a gente pensa sejam calados para que se possa ouvir os pensamentos do escritor. A leitura se inicia, assim, com um ato de alienação: voluntariamente o leitor se coloca fora do mundo que lhe é familiar e se aventura a entrar num mundo diferente.

No livro de Thomas Mann José do Egito se encontra essa passagem genial. José havia sido vendido pelos seus irmãos a um mercador que se dirigia ao Egito. E como o mercador frequentemente não entendia as suas idéias, José resolveu explicar-lhe o que estava acontecendo por meio de uma imagem:

“Tu estás a não mais que um metro distante de mim. E, no entanto, ao teu redor gira um universo do qual o centro és tu e não eu. E ao meu redor gira um universo do qual o centro sou eu e não tu.”

Quando o livro que se lê é um livro do mundo que nos é familiar, a leitura é fácil e pode ser prazerosa. Mas não acrescenta nada. O lido é o já sabido. Mas quando o livro é de um outro mundo diferente do da gente, aí a leitura pode ficar difícil como escalar uma montanha. Mas não há alternativa: se o leitor deseja entrar no mundo do livro ele deve esquecer-se do mundo em que habita e aventurar-se por mundo desconhecido.

Se você não entendeu o que escrevi, leia Guimarães Rosa, Manoel de Barros, Gabriel Garcia Marques, Mia Couto: todos eles são seres de outros mundos.

Aí Schopenhauer adverte: segue-se que os ratos de biblioteca, aqueles que gastam todo o seu tempo lendo os pensamentos dos outros, acabam de perder a capacidade de pensar os seus próprios pensamentos. Tornam-se “citadores”, “repetidores” dos pensamentos dos outros. E ele acrescenta que conhecia muitas pessoas que haviam se emburrecido pela indigestão excessiva de livros.

O segundo momento da leitura é quando o leitor, havendo entrado no universo dos pensamentos do autor do livro, volta para o seu próprio universo para digerir o mundo estranho por onde viajou, a fim de “assimila-lo” isto é, fazê-lo semelhante a si, fazê-lo seu.

Assim, se você, ao ler esse livro, tiver a sensação de que se trata de um prato de jiló cozido amargo, não recuse. Coma até o fim. Trata-se de uma iguaria de um outro mundo que você desconhece, ótimo para ser transformado em patezinho e servido com caviar sobre torradas.

Mas o que mais me alegrou ao ler os canapés preparados pelo Ricardo Lengruber foi descobrir que somos “conspiradores”. “Conspiradores” são pessoas que respiram o mesmo ar: “com” e “inspirar”. Em nossas cozinhas literárias se sentem os mesmos cheiros, se encontram os mesmos temperos, as mesmas pimentas, os mesmos ingredientes e se preparam as mesmas iguarias.

Esse livro é apenas um aperitivo. Gostaria que você o degustasse. Mas vagarosamente, para que você possa sentir o seu gosto. Quem sabe você se tornará um conspirador ou conspiradora também?

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