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Prof. Ricardo Lengruber (ricardo@lengruber.com)

Sobre autores e textos


Escrever não é, somente, simples ferramenta de comunicação. Não é possível apenas lançar mão de signos e fazê-los dizer isso ou aquilo, mecanicamente. Essa não é a vocação da escrita.

Escrever é fazer escolhas; ao optar por essa ou aquela palavra, se faz uma espécie de seleção ou recorte. Ou seja, diante da folha em branco, o autor faz opções - conscientes ou não - pelos rumos que seu texto tomará. E, ao se permitir escolher, empresta ao texto uma autonomia toda especial. Não que o texto, nesse primeiro momento, passe a ter vida própria já, mas que sua mensagem criará uma realidade específica e, de certo modo, distinta da concretude do aqui e agora. São nesses termos que se pode dizer que um texto é autônomo: ele cria uma realidade toda própria.

Por conta disso, não seria exagero dizer que todo texto - qualquer texto - é uma peça de ficção ou um exercício de fantasia. A realidade do texto é, sempre, distinta da realidade crua da vida.

O autor, ao fazer suas escolhas e assumir suas preferências, se coloca por trás das palavras e, ao mesmo tempo que revela interesses e intenções, se esconde no texto. Não me parece correta a ideia que o autor se entrega por meio de seu texto. O que ocorre é uma auto-criação do autor por meio de sua produção textual. Ao mesmo tempo que o autor escreve, ele seleciona o que de si quer revelar.

Os textos nascem da realidade, mas dela tratam com o distanciamento que a palavra exige e, nesse processo, concedem-na uma dimensão toda especial, onde fato e fantasia se comungam mutuamente.

Pensar que fantasia é falseamento da realidade é o mesmo que dizer que a realidade existe em si mesma e não requer mediações para sua compreensão. E isso não é verdade. Tudo que nos cerca - mesmo nós mesmos - carece de uma linguagem para poder dizer-se. Toda linguagem, ainda que endurecida pelo rigor dos conceitos, está sempre eivada de fantasia. Toda linguagem é, de algum modo, fantástica.

Isso revela duas surpreendentes descobertas. A primeira é que, necessariamente, a relação que estabelecemos com a realidade passa pelo viés da inventividade. A palavra foi o meio que desenvolvemos para capturar e tratar a realidade. A segunda é que, nesse processo de apropriação simbólica da realidade, plantamos a possibilidade de transformar essa mesma realidade. O que significa dizer que a dimensão fantástica dos textos é, em algum sentido, revolucionária.

Prova disso é a linguagem simbólica de textos religiosos na Antiguidade. O apocalipse do Novo Testamento, por exemplo, é esplêndido e fantástico na suas descrições da realidade. O que parece incrível e sem sentido, na verdade, é a via possível de aproximação com a história e, ao mesmo tempo, uma tentativa de transformação dela.

Um texto não é, por isso, um espelho; antes, talvez, uma janela por onde o leitor tenta enxergar algo ou mesmo a si próprio; um espaço pelo qual o autor burla a si mesmo. Inventa-se e esconde-se. Projeta-se e lança-se adiante. Transforma-se e transforma seu entorno.

Na escola, o desafio de professores e currículos é favorecer que a dimensão libertadora da Literatura encontre eco entre estudantes. Quando a escola conseguir transformar alunos em leitores e leitores em autores, conseguirá também mudar o rumo da História.

Um texto não diz nada além do que desejamos ser. Quem está no texto é um autor. Esse, todavia, é diferente da pessoa que escreve. Não apenas o texto é uma criação; o autor, ele mesmo, é uma construção de si. Pelo texto, nos inventamos e nos transformamos constantemente.

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