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A FILOSOFIA É UM PERIGO


A filosofia é uma espécie de saber sobre si mesmo. Uma reflexão a respeito do conhecimento humano e todos os seus desdobramentos (éticos, técnicos, estéticos, religiosos etc). Da mesma forma que toda ciência tem um objeto definido de estudo, a filosofia tem como seu objeto o próprio saber, a própria reflexão, o próprio conhecimento.

A filosofia nasceu já com a suspeita de que os saberes são sempre intencionados e ideologicamente orientados. Por isso, a filosofia se comporta desde sempre como crítica sobre os meandros pelos quais os saberes se constroem. A filosofia é a antítese da doutrinação. No fundo, qualquer verdade imposta é combatida e relativizada pela filosofia.

Platão e Aristóteles, já na origem das indagações filosóficas, inauguraram as perguntas que nos acompanham até hoje sobre sujeito e objeto e sobre a gênese e as características do conhecimento. Aliás, mais que isso, é Platão o grande responsável pela própria ideia de que o saber sobre uma coisa é distinto dessa coisa em si. Raciocínio tão potente ao ponto de nos dar a chance de propor hipóteses e teorias sobre os fenômenos (naturais, sociais e existenciais) mais desafiadores da natureza e da civilização.

Qualquer saber - dos mais práticos e utilitários aos mais teóricos e reflexivos - traz consigo alguma dose de filosofia. Carrega em seu bojo uma reflexão sobre si mesmo. E deve, por outro lado, ser posta à prova pela mesma crítica filosófica. A filosofia é o senso crítico que o conhecimento tem de si mesmo.

É um equívoco considerar que há ciências maiores e outras menores. Que há umas com maior e outras com menor utilidade. Tales, Pitágoras, Euclides e Descartes foram, ao mesmo tempo, matemáticos e filósofos. A praticidade da matemática (se é que se pode categorizar assim) nasceu exatamente da faculdade reflexiva, curiosa e metódica da filosofia.

Toda filosofia tem, além disso, um caráter público. Nasceu na praça pública e se ocupa da vida real das pessoas concretas. Por isso, as sociedades desenvolvidas primam pelo incentivo à reflexão filosófica consistente, ampla e livre.

A construção dos Estados modernos assentados na lógica dos direitos humanos fundamentais, bem como as reflexões sobre economia e sociedade, só existem graças ao esforço filosófico de autores como Hobbes, Locke, Rosseau, Kant, Marx, Ricardo e Smith.

Por outro lado, ao longo de toda a história do Ocidente, a filosofia sofreu perseguições. O caso de Sócrates é uma espécie de sacramento dessa experiência vivida por quem deseja revolver a terra batida dos saberes estacionados; de quem se esforça por desvendar o que há por trás e na base das ideias, dos discursos e das práticas.

Sócrates foi assassinado pelo Estado, pela sociedade e pelos seus pares, acusado de “desviar” os jovens. Toda vez que o sistema se sente ameaçado são os pensadores que acabam por ocupar o primeiro lugar na fila dos perseguidos.

É claro que existem ameaças à juventude. Mas jamais é a filosofia a protagonista. As verdadeiras ameaças são o desemprego, a violência, o preconceito e a resistência a mudanças.

Além disso, há em curso hoje uma espécie de banalização do saber; uma desconsideração com a análise cuidadosa sobre os fatos e problemas. Um certo desdém com a ciência, com a filosofia, com o esforço intelectual. Mais que isso: às vezes, ocorre uma criminalização da reflexão. Como se pensar e dar espaço para a dúvida e para o contraditório fossem pecados. A lógica de um pensamento único é puramente pragmático é irmã da ignorância. Não há saber se não houver dúvida, instabilidade, inconclusões e pluralidade. As sociedades só avançam se houver pesquisa e coragem para a descoberta do novo.

Não nos enganemos: sem filosofia, o desemprego aumentará. Afinal quem será capaz de aprender a aprender permanentemente (exigência desse mercado altamente tecnológico e inovador) sem cultivar os exercícios epistemológicos que só a filosofia é capaz de fazer? Imaginemos que a ciência moderna simplesmente não existiria sem as bases formuladas por Hume, Bacon, Hegel e Kant, por exemplo.

Sem filosofia (em geral) e sem as ciências humanas e sociais (em especial), a violência aumentará. Porque sem reflexão sobre as raízes dos conflitos sociais, jamais haverá alternativa verdadeiramente eficaz no trato dessas questões. Sem ler Durkheim, Marx e Weber não daria sequer para começar qualquer discussão sobre esses temas.

Sem filosofia, a tendência da sociedade é se tornar mais e mais preconceituosa e mergulhada em estereótipos. Só o exercício da reflexão sobre ética é capaz de nos desalojar ao ponto de promover mudança. As teses de Hannah Arendt são exemplos provocativos dessa relação estreita entre filosofia e sociedade.

Sem filosofia não há chance de uma sociedade avançar em qualquer um de seus aspectos: economia, saúde, segurança, tecnologia, educação e arte. E isso porque não há ciência que não seja antes indagação e curiosidade, aspectos que nascem e sobrevivem na filosofia.

Isso tudo sem entrar nos aspectos da existência humana propriamente dita. As reflexões, por exemplo, de Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche, Cioran e Sartre são a base sobre a qual se assentam as mais diversas e úteis teorias e técnicas psicoterapeuticas.

Apesar de todas as nossas dificuldades históricas e culturais, fundamentalmente marcadas pela colonização, o Brasil e a América Latina estão repletos de exemplos de pensadores e pensadoras, das mais diferentes áreas, que impactaram e ainda contribuem na crítica e na construção dos saberes. De Ruy Barbosa a Plínio Salgado e Mariátegui, de Anísio Teixeira a Darcy Ribeiro e Paulo Freire, de Eduardo Galeano a Rubem Alves, de Josué de Castro a Hilton Japiassu e Leandro Konder.

Governos autoritários tendem a silenciar a filosofia porque sabem de sua potência. Os sem visão de futuro tendem a desconsiderá-la porque não sabem de sua importância.

Por isso, a filosofia é um perigo. Suas intenções passam pela transformação profunda do que há de mais potente na humanidade: o conhecimento. E como há gente que odeia a mudança (porque está em lugares privilegiados), a filosofia sempre será uma ameaça.

No fundo, a perseguição à filosofia é um elogio e o reconhecimento de seu poder.

(*) Ricardo Lengruber é professor. Doutor pela PUC Rio, tem livros e artigos publicados nas áreas de Educação, Religião e Políticas Públicas. Foi Secretário de Educação em Nova Friburgo, presidente da ABIB e é membro da Academia Friburguense de Letras. Visite www.ricardolengruber.com

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