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Sobre leitura e leitores


"Há dois tipos de leitores: Os que cuidadosamente passam através de um livro, e os que, com igual cuidado, deixam que o livro passe através deles." (Douglas W. Jerrold)

Ler é uma experiência cultural extraordinária. Cultural porque não dispomos das competências leitoras naturalmente; construímos esse arsenal de habilidades e códigos ao longo do tempo das gerações e da vida de cada indivíduo. Extraordinária porque sempre, necessária e inexoravelmente, foge às regras e protocolos pré-estabelecidos; ler, por princípio, exige disponibilidade para encontrar o novo.

Interessa-me, ainda, a originalidade de escrever. Não a tarefa de narrar uma história ou discorrer sobre um tema, mas o ato em si de escrever, montar palavras, organizar frases, erigir textos. É esplêndida a gama de possibilidades que a escrita alfabética nos legou. Se os textos ideográficos exigiam muito da criatividade dos leitores, a escrita alfabética conseguiu dar mais exatidão aos textos e deles conseguiu fazer retratos mais pormenorizados da realidade.

E é justamente nesse momento que o texto passou a exigir leitores mais especializados. Ler passou a ser um gesto intelectual pleno. O mais pleno de todos! Não que prescinda da criatividade, mas concede a ela densidade e objetividade. Faz com que criatividade seja mais do que mera inventividade; antes, cresça como interatividade entre almas que se encontram no texto. Autor e leitor comungam por meio do texto e nele se encontram irmanadamente.

Se, por um lado, o escritor, ao entregar seu texto, dele se emancipa e a ele dá autonomia, o leitor, por outro, ao mergulhar na leitura, precisa permitir-se alienar por um bocado de tempo. Sim, toda leitura exige a coragem da alienação. Ou seja, demanda do leitor a entrega de sua consciência às rédeas do texto. Um bom leitor se deixa envolver pelo texto e dele absorve as essências e, em algum sentido, se deixa absorver pelo texto e por seu mundo. É nesse sentido que se aliena, se permite conduzir por um outro.

Paradoxalmente, todavia, no ato voluntário de auto-alienação, o leitor encontra a possibilidade de construir idéias próprias. Ao se permitir alienar, o leitor assume o risco de perder identidade, mas descobre que não é um vaso vazio que precisa ser preenchido por algo que lhe vem de fora. Descobre que tem muito a dizer ao texto. Descobre que, com o texto, na verdade, estabelece uma parceria profícua de idéias e experiências.

Há, nesse processo, uma via de duas mãos. Numa, o leitor que se permite inundar pela verdade do texto; noutra, o texto que se abre ao que o leitor tem a contribuir. Há, numa palavra, diálogo.

Ler, por tudo isso, é uma experiência geradora de coisas novas. Não apenas o ato de escrever é criativo. A leitura também realiza, em regra, criação. Ela dá voz ao que ainda não foi dito.

Nas palavras de Ítalo Calvino, "Ler significa preparar-se para capturar uma voz que vai surgir quando você menos espera. Uma voz que se deixa ouvir de um lugar inesperado, para além do livro, além do autor, além da escrita: ela vem do que foi dito, daquilo que o mundo ainda não fez a si mesmo porque ele não tinha palavras para dizê-lo".

Na escola, mais valioso do que ensinar o código, é estimular o desejo pela descoberta de experiências novas por meio da palavra.

Bons mestres conseguirão fazer nossos olhos verem a magia que está escondida sob as capas dos livros. Ajudarão a perceber o quanto a palavra é patrimônio humano por excelência. E, curiosamente, o quanto ela estimula o que há de mais radical na condição humana: a criatividade.

Ensinarão que a mesma palavra que demandou mais atenção de um leitor cada vez mais especializado é também a responsável pelo amadurecimento da criatividade.

Esses mesmos educadores nos darão a compreensão que a palavra - sua leitura e sua escrita - é, por um lado, resultado da atividade humana e dela um produto sofisticadíssimo; mas, por outro, é o fomento incansável para continuarmos a intervir transformadoramente sobre a realidade.

A escola cumprirá seu papel quando nos revelar que é a palavra, ao mesmo tempo, causa e consequência daquilo que somos e do que desejamos ser.

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