top of page

EREDEGALDA – VÍTIMA DO PAI E DE ALGUMA DESINFORMAÇÃO TAMBÉM


Li, por dever do ofício, o livro “Enquanto o sono não vem” de José Mauro Brant. O livro foi recolhido pelo MEC sob a alegação de que o conto “A Triste História de Eredegalda” fizesse “apologia” ao incesto.

O livro foi publicado pela Editora Rocco e integra o catálogo de livros do Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa (PNAIC).

No conto, o rei sugere se casar com uma de suas filhas, mas como ela não aceita, acaba sendo presa em uma torre. Morrendo de sede, ela aceita se casar com o pai, mas morre antes do casamento.

Acredito se tratar de um julgamento indevido construído por leitura equivocada a ideia de que o conto “incentive” o incesto.

A polêmica pode ter a ver com o puritanismo de quem não compreende o papel da literatura infantil na formação educacional e psíquica, bem como com a falta de capacitação adequeada dos professores para trabalhar com o material nas salas de aula.

Há uma desinformação geral do que sejam contos folclóricos e contos de fada; há uma dificuldade especialmente por serem territórios simbólicos que abordam assuntos delicados.

Quem lê com isenção o conto verá que, ao contrário do que se tem apregoado, o texto, na verdade, é uma história que dá voz a uma vítima. Eredegalda é vítima de seu pai. Não é incentivo ou apologia ao incesto que se lê no conto. Ao contrário: o que se experimenta, ao final da narrativa, é a morte de uma menina vitimada pela violência dentro de casa.

No Brasil, incesto e violência sexual dentro de casa são mais frequentes do que se pode imaginar. De um lado, uma cultura de sexualidade machista que vê no corpo da mulher (e da filha) uma posse; de outro, uma sociedade doentia que tem no mercado de pornografia um sintoma claro de como a sexualidade é experimentada (sugiro uma pesquisa no Google com a palavra “incesto”).

Obviamente que o tema é tão antigo quanto a própria humanidade (escrevi a respeito enquanto pesquisava para o doutorado – depois o texto foi adaptado e publicado no livro Incesto nas Leis do Levítico, Ed. Oikos). Mas é fato também que deve ser tratado, acima de tudo, com transparência e sem hipocrisias.

Eredegalda é uma vítima como milhares de meninas e meninos o são hoje em algumas milhares de casas brasileiras. E a denúncia desses abusos será tanto mais potente quanto mais consciência essas crianças tiverem que são sim vítimas de seus próprios pais, por exemplo.

Talvez o argumento sobre a faixa etária a que o livro se destine possa ser razoável. Mas, mesmo nesse caso, a adequada formação dos professores daria conta de driblar e fazer com que a mensagem – mesclada de denúncia e alerta – chegasse às crianças que são potenciais vítimas.

Enfim, violência sexual contra crianças é um fato e precisa ser denunciado todos os dias. Recolhendo livros que o fazem não se chegará a lugar nenhum; ao contrário. Educação é a única forma de conscientizar vítimas de sua condição. Por isso, professores precisam ter, além de ampla liberdade de ação, formação continuada e permanente.

______ Ricardo Lengruber é doutor pela Pela PUC/Rio. Foi Secretário de Educação em Nova Friburgo e é membro da Academia Friburguense de Letras. É autor de vários livros, dentre os quais “Incesto nas Leis do Levítico”.

252 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo
bottom of page