"Vivemos tempos líquidos.
Nada é para durar." (Bauman)
O tempo que chamamos hoje é marcado pela fluidez de certezas e conceitos. Questões antes tidas como certas e bem definidas passam por reconsiderações profundas. A isso, o sociólogo polonês Zygmunt Bauman denominou modernidade líquida.
Líquidos mudam de forma muito rapidamente, sob a menor pressão. São, por assim dizer, incapazes de manter a mesma forma por muito tempo. Adequam-se aos recipientes em que estão e, se não há recipientes, não conseguem forma definida, esparramam-se pela superfície sem qualquer direcionamento ou lógica.
Os tempos são “líquidos” porque tudo muda muito rapidamente. Nada parece ser feito para durar, para ser “sólido”. A palavra de ordem, nesse cenário, é “incerteza”. Disso resultariam, entre outras questões, a obsessão pelo corpo ideal, o culto às celebridades, o endividamento geral, a paranóia com segurança e até a instabilidade dos relacionamentos amorosos. É um mundo de incertezas. E de cada um por si. “Nossos ancestrais eram esperançosos: quando falavam de ‘progresso’, se referiam à perspectiva de cada dia ser melhor do que o anterior. Nós estamos assustados: ‘progresso’, para nós, significa uma constante ameaça de ser chutado para fora de um carro em aceleração” (Z. Bauman).
O exemplo mais emblemático desse novo estado das coisas é, acredito, a potencialização do “mundo virtual”. Os contatos online, por exemplo, têm uma vantagem sobre os offline: são mais fáceis e menos arriscados — o que muita gente acha atraente. Eles tornam mais fácil se conectar e se desconectar. Casos as coisas fiquem “quentes” demais para o conforto, pode-se simplesmente desligar, sem necessidade de explicações complexas, sem inventar desculpas, sem censuras ou culpa. Atrás de um laptop ou iPhone, com fones no ouvido, pode-se minimizar os desconfortos do mundo offline. Mas, como nada é de graça, entre os valores perdidos estão as habilidades necessárias para estabelecer relações de confiança, aquelas que se mantêm na saúde ou na doença, na vitória ou na derrota.
Disso tudo, porém, algo se mantém inabalado. Ou, aliás, é justamente porque não conseguimos mudar evolutivamente tal característica que naufragamos na liquefação do nosso tempo. Somos, radicalmente, egoístas. Isso pouco mudou. Ocorreram mudanças e relativizações gigantescas em muitos outros valores, mas permanecemos mais preocupados do que nunca com o próprio umbigo.
Imagino, em eras pré-históricas, um indivíduo em um ambiente em que todos devem lutar com unhas e dentes por seu espaço, seu alimento e seu gole d’água. Este homem, que foi corrompido pelo ambiente, pois as condições para sobrevivência eram péssimas, por mais que queira a paz, não se incomoda em entrar em guerra porque precisa, simplesmente, sobreviver. Homo homini lupus, nas palavras de Thomas Hobbes.
Ocorre, todavia, que a caminhada da civilização tem sido uma tentativa de frear tal natureza e fazer o ser humano alavancar sua existência na direção da fraterna e solidária comunhão entre os indivíduos. Por isso, privilegiamos sentimentos especiais que a natureza nos legou e esforçamo-nos para fazê-los determinantes; sentimentos como afeto e amor; valores como zelo, cuidado, respeito e honestidade.
A história é uma sequência de tentativa e erro na luta da cultura da paz contra a natureza da guerra. O que denominamos ética é, numa palavra, o esforço individual e coletivo de suplantar o dado da natureza beligerante e fazer aflorar a cultura do amor. Religiões, sistemas filosóficos e políticos, instituições e famílias, cada uma ao seu modo, o que tentam fazer há milênios é estimular o que há de melhor dentro de cada um.
Da mesma forma que foram possíveis as inúmeras adaptações físicas e orgânicas, evolutivamente, para a sobrevivência da espécie, julgo que seja esse o esforço da ética para o aprimoramento de homens e mulheres.
Vejo, infelizmente, que, como conceitos que se liquefazem dadas as incertezas do nosso tempo, há indivíduos que optaram por permitir que sua ética tome, convenientemente, a forma do recipiente em que estão. Dependendo da vasilha, assumem essa ou aquela forma. Não têm identidade. Possuem, apenas, conveniência!
A isso, os antigos chamavam “caráter”. Ou, mais precisamente, “falta de caráter”!