Bíblia é uma palavra no plural. Livros. Biblioteca. Conjunto de textos. De épocas e locais distintos. Bíblia é pluralidade, portanto.
Lê-la é experiência de devoção, sim. Mas vai além disso. É um exercício de despojamento. Há mais incertezas e dúvidas do que portos seguros. Sua inspiração reside, em algum sentido, em sua abertura.
Os textos são de mais de dois milênios atrás. Os originais autográficos não existem mais. Na melhor das hipóteses, o que temos são cópias de cópias de cópias. E, além disso, cópias com razoáveis variantes entre si. Umas, sem relevância. Outras, com considerável diferença que interferem nos significados.
O trabalho do exegeta debruça-se exatamente sobre isso. Escolher um texto; localizá-lo no tempo e no espaço. Descobrir o que os alemães denominam Sitz im Leben. Perscrutar suas palavras. Entender seu gênero. Percorrer suas tradições. Perseguir sua redação. Compreender seu estado atual. Perguntar sobre seus autores/as.
Ao teólogo, cabe atualizá-lo. Dizer sobre sua relevância hoje. Fazê-lo comunicar. Torná-lo, efetivamente, Palavra. Teólogos vivem do desafio de compreender e conviver diante do abismo. Experimentam cotidianamente o chamado de quem se sabe ignorante, mas corajoso e determinado.
Fico sempre me perguntando sobre o valor de um texto que sabemos que é uma coletânea de outros que o antecederam, sequer sabemos seus autores, de longe conhecemos sobre sua procedência geográfica e menos ainda entendemos sobre como fora lido e compreendido em seu espaço de origem.
Esse tipo de texto só pode ser compreendido se sob a lógica da inspiração.
E isso não tem nada a ver com mágica. Isso é pura capacidade de lidar com a dúvida, com a instabilidade, com a mudança. Inspiração é, por assim dizer, palavra no plural.
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A boa literatura é necessariamente ambígua.
O livro Obra Aberta – Forma e Indeterminação nas Poéticas Contemporâneas é um estudo clássico de Umberto Eco.
Baseia-se na ideia da obra de arte como inacabada, de modo a exigir de seus receptores uma participação ativa, uma percepção peculiar entre inúmeras possibilidades interpretativas.
Ou seja, há uma ressignificação contínua.
Por isso, por exemplo, há dúvidas sobre se a literatura de autoajuda é, de fato, literatura. Em geral, ao final da leitura, todo mundo terá lido a mesma coisa.
Pergunto-me sobre a Bíblia, então. Não faltam ambiguidades. E isso é muito provocante. Talvez seja exatamente isso que se denomina como sopro do espírito. Um texto que se renova todo dia, em cada leitor.
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A Bíblia tem duas importantes características, se pensada desde as perspectivas histórica e antropológica.
Primeiro porque foi (e é) uma espécie de auto afirmação de identidade. Num universo plural, e político-militarmente mais forte, "Israel" construiu sua imagem, forjou sua personalidade coesa em torno de referenciais mínimos.
Segundo porque levou adiante sua visão de mundo. E influenciou. Ainda hoje, pensamos com referências bíblicas (ainda que inconscientes ou ateus).
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A leitura religiosa da Bíblia supõe fé. Pela fé, crê-se que seja a Palavra de Deus. Nada nela prova ou demonstra isso. Trata-se, exclusivamente, de um "a priori" (a fé). Nesse sentido, a leitura da Bíblia (se útil, literária ou psicologicamente, que é) é como que inútil religiosamente. Afinal, não tenho fé porque leio a Bíblia; é o contrário: a fé é que me faz lê-la como inspirada (ou sagrada). No fundo, por isso, foi instituída, canonizada: para regrar o que, por princípio, não tem amarras. Ou seja, a Bíblia existe pra disciplinar o que a sustenta - a fé.
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Textos antigos, geralmente de natureza compósita, como é o caso da Bíblia, são lidos sob duas perspectivas.
A leitura sincrônica observa o texto em seu contexto literário. Analisa o texto como inteireza e interpreta-o em conexão permanente e harmônica com seu universo.
A leitura diacrônica perscruta a história da composição do texto. Investiga sua trajetória oral, tradicional e escrita até chegar a ter a forma que hoje o lemos.
Sincronia e diacronia são perspectivas, em alguma medida, complementares.
Agora, o problema é quando ocorre anacronismo. Aí, já era. O texto dirá tudo. E salve-se quem puder.