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Prof. Ricardo Lengruber (ricardo@lengruber.com)

Bandido bom é bandido morto


“Se o ladrão for achado roubando, e for ferido, e morrer, o que o feriu não será culpado do sangue.” (Ex 22,2)

Tenho visto cada vez mais pessoas trazendo os textos do Antigo Testamento à tona, especialmente textos “legislativos” para aplicação a situações de crimes e violência na atualidade.

As atualizações são praticamente mecânicas. Toma-se a tradução do texto hebraico em português (e tudo de complexo que significa uma tradução nesses casos) e simplesmente se aplica o significado mais imediato do versículo ao tema do dia.

Isso se chama anacronismo. Toma-se um texto fora de seu contexto e aplica-se como pretexto para o que convém.

No episódio do tatuador, por exemplo, vi gente condenando tatuagem porque a Bíblia o faz (Lv 19,28) e vi gente querendo aplicar ao menino a lei mosaica ao pé da letra (Ex 22,2).

Eu sei que o que está por trás disso tudo não é nenhuma fidelidade à Bíblia. Se o fosse, muitos outros textos inoportunos teriam que vir também à tona. E não vêm. Ficam esquecidos lá no passado. Sugestão de leitura a esse respeito é o capítulo 11 de Levítico. Nele, há diversas proibições sobre alimentos. Porque ignoramos essas prescrições e adotamos outras como verdades universais?

Mas vale a pena refletir sobre o que são esses textos e o alcance dessa Lei. Vale a pena ler sobre o processo de composição do Pentateuco (onde estão os três grandes corpos “jurídicos” da BH – o código da Aliança em Êxodo, o código de Santidade em Levítico e o código deuteronômico em Deuteronômio). Vale a pensa entender porque há tantas aparentes inconsistências entre eles e conhecer sua origem histórico-social.

Em hebraico, Lei é Torah, que significa instrução. As orientações que a mãe dá a seus filhos no processo de sua educação. É bem diferente do que modernamente compreendemos como “lei”. Tem mais a ver com sabedoria e costumes tradicionais do que com códigos e processos legais. Por isso, há leis muito diferentes sobre um mesmo tema na mesma Bíblia. Não são contradições. São acúmulo de tradição e releitura permanente da própria história.

Por isso, também, no Novo Testamento, o evangelista Mateus coloca na boca de Jesus a célebre assertiva: “não penseis que vim revogar a Lei ou os profetas; não vim revogar, mas cumprir” (Mt 5,17). Cumprir aqui tem o significado do verbo grego “pleromai”, plenificar. A lei bíblica está em permanente releitura de si mesma. Quando questionado sobre o cumprimento da lei, Jesus afirmou que o sábado (a lei) foi feita para o ser humano e não o contrário.

Compreendida assim, a lei deixa de ser um jugo sob o qual devemos andar oprimidos e obrigados e passa a ser um instrumento de libertação social e autonomia.

Lei é liberdade.

A festa Hebraica de Shvuot (Pentecostes) celebra exatamente essa dimensão da fé israelita. Depois de libertados da opressão no Egito, os israelitas caminharam pelo deserto e, no deserto, recebem a Lei como instrumento de preservação de sua liberdade.

A festa de Pentecostes foi relida pelos cristãos como a vinda do Espírito sobre a Igreja. Porque desde sempre a intuição originária de judeus e cristãos se encontrava na convicção de que lei e espírito se complementam, especialmente quando estão a serviço do ser humano.

Tão equivocada quanto o anacronismo da leitura fundamentalista do Antigo Testamento, é a ideia de que o Novo o tenha anulado. Além de heresia doutrinária, é uma violação cultural gravíssima com as tradições hebraicas antigas.

Não houve ninguém que tenha cumprido as leis bíblicas com mais assertividade do que Jesus. E o fez exatamente porque ousou vivê-las pela perspectiva humanista da gratuidade, da generosidade, da empatia e do amor.

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