A utopia ilumina a ética. Se não há pelo que esperar no futuro, não importa muito a maneira como se age no presente!
A vida humana é uma colcha de mil e um retalhos. A aparente uniformidade só é percebida se a vida for vista desde longe, superficialmente. Quando se aproxima o olhar, e se atenta para os detalhes, se percebe que há uma multiplicidade incrível de aspectos. Somos, por assim dizer, “um” e “muitos” ao mesmo tempo. Um combinado de unidade e pluralidade; uma densa rede de tensões. Agir e esperar são elementos constituintes de nossa individualidade.
O fato de estarmos numa situação específica não nos identifica, necessariamente, com as características todas dos outros que ocupam posições semelhantes. Fazer parte de um grupo ou simpatizar com uma ideologia não nos assimila a um ou outro. Por outro lado, no entanto, nossa identidade está ligada, de alguma forma (mais, ou menos) com uns em detrimento de outros. Por tudo isso, classificar e categorizar pessoas é um equívoco!
As generalizações só são possíveis – e cabíveis – nos cenários em que se pretende entender um amplo universo de coisas e, por alguma razão, aproximar os mais próximos e afastar os mais afastados. Mas para que isso seja viável, é preciso eleger um ponto de interseção; uma área onde alguns indivíduos se comportam semelhantemente. A seleção desse ponto comum ajuda a reunir grupos em torno dessa convergência. Isso não significa, todavia, que os incluídos nessa lista sejam semelhantes também em outras categorias propostas. A rede de relações entre as pessoas é mais complexa do que os esquemas são capazes de assimilar. Pertencimento e identificação são categorias que, ao mesmo tempo, aproximam e afastam, acolhem e espantam. A forma de agir está condicionada, por assim dizer, por aquilo que esperamos e acreditamos. É essa “fé” fundante que orienta o pertencimento a esse ou àquele grupo, nesse ou naquele momento.
Há pontos de convergência que exercem mais ou menos atração; mas, em qualquer caso, não há nada capaz de igualar pessoas. Julgar os indivíduos por sua simpatia a isso ou aquilo é um erro grave. As pessoas transcendem aos esquemas nos quais tentamos enquadrá-las. E isso é bom.
É curioso que buscamos, ao mesmo tempo, individualidade e coletividade. Por um lado, desejamos ser reconhecidos pela singularidade de nossa existência; um corte de cabelo, uma tatuagem, uma preferência musical, uma viagem realizada – são distintivos do “eu”. Por outro lado, precisamos ter a sensação de pertencimento; o corte de cabelo da moda, uma tatuagem porque tatuar o corpo é uma tendência atual, o estilo musical da última hora, a viagem a este lugar em especial – são elementos que nos fazem parte do grupo e nos identificam com o coletivo.
É como se habitasse dentro de nós uma constante e permanente tensão entre essência e existência. Um enfrentamento perene entre o que faz “o que somos” e o que nos impele a ser da maneira “como estamos sendo”; isso sem falar naquilo que “desejamos ser”, ou naquilo que “esperamos por ser”. Olhando de perto um indivíduo em particular, caem por terra certezas sobre se há em nós algo de essencialmente inato ou se nos abrimos despudoradamente às influências do mundo que habitamos. Entre o essencialismo puro e o existencialismo radical, há mil e uma variações. O espaço de cada um de nós depende do momento e do lugar nesse limiar tênue e frágil.
Creio que seja por isso tudo que vivemos uma positiva e constante crise de identidade. Experimentamos diuturnamente uma busca por algo que está, aparentemente, além de nós. Habita dentro de nós um desejo insaciável por algo além do que está posto. Não desejamos isso ou aquilo, simplesmente. Desejamos tudo! Essa inexorável sede é, ao mesmo tempo, motor da existência (porque nos alavanca para adiante) e causa permanente de frustração (porque esbarramos sempre nos limites da vida). O grande desafio da vida está em aprender, todos os dias, ousar e avançar, sem perder de vista a imperiosa necessidade de saber recuar e desistir; está em construir uma individualidade que se sustente, sem deixar escapar a necessidade de pertencimento e acolhimento com os semelhantes.
Identificar uma pessoa exclusivamente por conta de suas opiniões é muito arriscado, mas ignorar suas preferências é desconsiderar sua contribuição à coletividade.
Todos somos, em alguma medida, “eu” e “nós”. Em cada um, habita, paradoxal e concomitantemente, natureza e desejo. Somos o que a natureza nos fez ser, mas, para além disso, insistimos em inventar uma vida nova a cada dia.
Talvez seja por isso que as religiões apregoam com certa recorrência a ideia de arrependimento; a virtude humana de fazer e perceber o feito equivocado, ou não fazer e reconhecer a omissão. Só é capaz de se arrepender quem ousa agir ou quem prefere esperar. Tanto num quanto noutro caso, o que está em jogo é a livre decisão da pessoa.
No fundo, o que interessa é que somos livres: é isso que nos identifica como “indivíduo” e nos categoriza como “coletivo”. A mesma liberdade que nos outorga “pessoalidade” é a que nos une na “sociedade”. Somos capazes de nos arrepender, porque somos livremente éticos.
Nossa identidade está diretamente ligada àquilo em que cremos, àquilo pelo que esperamos. A utopia ilumina a ética! Se não há pelo que esperar no futuro, não importa muito a maneira como se age no presente.
Por isso, não há nada de errado na busca pelo pertencimento a esse ou aquele grupo ideológico; o problema surge quando uma determinada visão de mundo se sobrepõe a um conjunto de valores e os relativiza. Quando isso ocorre, nos indispomos com a coletividade e optamos pela individualidade. Iss porque os fins e os meios são interdependentes; uns não podem, isoladamente, justificar os outros.
É exatamente quando a ética, iluminada pela utopia, irrompe com o entorno e constrói uma pessoa verdadeiramente livre que, por sua vez, há de ajudar na transformação do mundo com o qual rompeu!