Os judaítas exilados na Babilônia estão entre os mais criativos escritores da história. Sabem conjugar simbologia, política e fé.
Primeiro, afirmaram que fora Deus quem criou o Sol e a Lua. E, antes desses, criou a Luz. De uma semana de sete dias, no princípio dela criou a Luz, no meio (no quarto dia) criou os luminares e no sétimo e último dia descansou.
Esse tipo de afirmação pra quem oprimia em nome de seus deuses, reapresentados pelo sol e pela lua, por exemplo, é uma potente afirmação política. Disfarçada pela guerra de deuses, o que está em jogo é a liberdade das pessoas.
Depois, ao recontarem a antiga história do dilúvio (presente em tantas civilizações, inclusive na babilônica), fizeram questão de registrar que o sobrevivente fora Noé.
Quem sobrevive não é o rei. O que permanece vivo e com quem se estabelece uma nova aliança de fidelidade entre deus e a humanidade é um homem simples do povo. Sua patente não é o sangue real, antes seu temor e fidelidade à Deus.
Esse é o tipo de história que vira de cabeça pra baixo a lógica do establishment.
Por fim, ao narrarem a história de uma gente que desejava visibilidade com a construção de uma alta torre, os escritores bíblicos põem em discussão os totalitarismos. Uma única língua é um problema a ser combatido. A pluralidade é abençoada.
A Bíblia abre suas milhares de páginas com narrativas mais que simbólicas, revolucionárias. E três mensagens ganham destaque e dão o tom com o qual seguirão as outras tantas narrativas.
1. Deuses só devem ser respeitados se não servem como instrumento de opressão. E se se dão o espaço do descanso. Um deus digno é o que subverte a lógica do trabalho opressor e humaniza as relações. Sol e lua (e tudo mais que exista - inclusive o ser humano) é criatura. Sua dignidade é saber seu lugar na criação.
2. Por pior que seja a experiência, mesmo que seja a de um dilúvio avassalador, a salvação virá da fidelidade dos invisíveis. Quem constrói a história também a redimirá. Por isso, são Deus e Noé os responsáveis pela nova era da criação.
3. Se é verdade que há um desejo permanente de controle total sobre tudo e todos, é verdade também que está no cerne da criação a confusão. Uma mistura premeditada de línguas e culturas que, além de enriquecer a humanidade, inviabiliza projetos de opressão.
Como um clássico, a Bíblia segue interpelando a história. E sempre dizendo algo relevante e atual. Mensagens que transbordam do universo religioso e alcançam a vida concreta de pessoas reais.
O desafio é ler.