O Brasil tem características muito pitorescas. Uma delas é sua forma subliminar - mas flagrantemente perversa - de discriminar. Por aqui, há pessoas e pessoas. Umas, mais! Outras, menos! Nosso país é pobre, como inúmeros outros espalhados pelo planeta; mas, por aqui, a pobreza tem cor; e a cor da pobreza no Brasil é preta.
O dia da consciência negra (vinte de novembro) retrata essa profunda fissura que há na sociedade. Com a cordialidade própria de uma cultura que é incapaz de assumir seu racismo, fingimos que respeitamos a data e tudo se mantém como sempre: ter preta a cor da pele significa, em geral, estar entre o percentual mais pobre e mais vulnerável socialmente.
Reclamar o feriado da consciência negra - sob o argumento neoliberal do prejuízo econômico - é, no mínimo, injusto para com a força de trabalho de gente escravizada que, por quase quatro séculos, fez engordar os cofres coloniais e imperiais desse país.
Há tantos feriados inquestionados, mas que trazem o mesmo "prejuízo"; são celebrados por poucos, mas, por fazerem parte da herança europeia, não são colocados sob a suspeita do vinte de novembro. Penso em "corpus christi", por exemplo.
Concordo em refazermos nosso calendário de feriados, desde que rediscutamos o sete de setembro (de uma independência fajuta) ou o quinze de novembro (de uma república golpista) e, quem sabe, adotemos o vinte de novembro como a data nacional por excelência - dia da reflexão nacional sobre nossas origens e nossas mazelas.
Sabemos tanto sobre a história europeia, mas quase nada sobre as nações africanas que estão na base de nossa civilização. O mesmo pouco sabemos sobre os inúmeros povos indígenas (dizimados) que nos antecedem nessa terra invadida e estão na composição do nosso sangue pouco caucasiano. Infelizmente ainda "fantasiamos" nossas crianças de índios!
Não faltam os historiadores de almanaque que relativizam a historicidade do Zumbi. É claro que há uma romantização da figura heroica do líder do Quilombo de Palmares, mas não é o mesmo que ocorre com todas as outras figuras de nosso farto calendário de folgas (D. Pedro, Floriano, Tiradentes; sem adentrar na esfera dos feriados religiosos)?
No Brasil, os "negros" são "eles". A polaridade "nós" x "eles" é a marca explícita de um racismo que nos nutre desde dentro; algo tão enraizado que sequer nos apercebemos. O que faz, por exemplo, com que um policial (ainda que negro) privilegie a revista de um "suspeito negro" em detrimento de um "branco".
Outra questão: o mesmo neoliberalismo, que reclama dos prejuízos de vinte de novembro, alardeia uma série de argumentos contrários à política de "cotas" nas universidades; dessa vez, sob o argumento da meritocracia. Mas é possível mesmo falar de meritocracia quando não há condições iguais na concorrência dos vestibulares? Porque a universidade pública só pode ser acessada, via de regra, pelos alunos egressos das escolas particulares? E é falsa a ideia de que a política de cotas seria melhor se fosse com critérios "socioeconômicos"; repito: no Brasil, a pobreza tem cor!
Não dá para ignorar que somos uma mistura peculiar de sangue africano, sangue europeu e sangue indígena. A biologia mais recente ajuda a elucidar os porões dessa nossa identidade invisível. Descobrimos que somos, todos, também, afrodescendentes. O problema é com a cor da pele!
Antes de terminar, convido o leitor a fazer o "teste do pescoço". Busque na internet pelo assunto. Luh de Souza e Francisco Antero nos convidam a aplicá-lo e, obtidas as respostas, a nos questionarmos sobre se de fato somos um país pluricultural, uma democracia racial. Entre as sugestões do teste, destaco uma: "vá às universidades públicas, enfie o pescoço adentro e conte quantos negros há por lá: professores, alunos e serviçais".
Enquanto isso não muda, continuamos a fingir nossa democracia racial dando espaço, no faz-de-conta do carnaval e do futebol, aos craques da bola e do cavaco. Vez por outra surgirá um Joaquim Barbosa e nos redimiremos ao dizer: "viu? não somos tão racistas assim!"