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Prof. Ricardo Lengruber (ricardo@lengruber.com)

Vocação e Teologia


“Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir.” Clarice Lispector

A sabedoria oriental tem muito a ensinar ao Ocidente pragmático e utilitarista. O caminho que fazemos para fora de nós, na incansável busca pelo progresso e pelo sucesso, é uma espécie de busca de realização do lado de fora. Na verdade, essa tal realização ocorre do lado de dentro e, quando isso não está bem compreendido, a busca se torna uma enfadonha peregrinação sem fim e sem êxito.

Quando conseguimos compreender que o “eu interior” não é algo que encontramos, antes algo que construímos, conseguimos romper com os viciosos círculos de busca sem sentido. Essa ideia talvez nos ajude a perceber que nós, efetivamente, não estamos prontos nunca. Como lembrava Paulo Freire, nós estamos continuamente num processo de auto-realização, de auto-construção.

Ocorre, todavia, que entre religiosos há uma concepção equivocada a esse respeito. Vocacionados que se sentem para uma determinada vida, sabem-se dirigidos e orientados para essa tal missão. Por exemplo, pastores/as se decidiram por tal ocupação porque se conhecem chamados por Deus para servir ao próximo (ou à Igreja) e, por meio dele, ao próprio Deus. Essa convicção, portanto, os faz seguros de sua missão e não raro os torna demasiadamente auto-confiantes e, por vezes, com uma certeza quase messiânica.

E aqui reside um sério problema. Quem se sabe pronto e acabado, em geral, é pouco aberto à mudança. Mas é exatamente essa característica que move a vocação religiosa. É a suprema capacidade de se deixar converter continuamente que mantém acesa a chama do chamado religioso.

A afirmação de Clarice Lispector me faz pensar, então, sobre o significado de nossa vocação, seja ela qual for. “Vocação é diferente de talento. Pode-se ter vocação e não ter talento, isto é, pode-se ser chamado e não saber como ir.” Será, mesmo, possível ser chamado por Deus, mas não dispor do talento, da habilidade requerida para desempenhar tal tarefa?

Claro está que em tempos de metas e alvos estabelecidos sob a ótica da prosperidade utilitarista e desumanizadora, vocação tem que ser sinônimo de capacidade para. Mas se pensada sob a concepção bíblica de valorização do ser humano, vocação é bem diferente. Seu verdadeiro significado reside na mais absoluta capacidade de saber olhar. Lembro-me do Poema do Menino Jesus, de Fernando Pessoa. “Ele me ensinou tudo; Ele me ensinou a olhar para as coisas ...”

Pastores são diferentes de administradores. Mesmo que em sua ocupação haja a requisição de tal tarefa, essa não é o fim tampouco o sentido de sua missão. Pastores são chamados para ajudar as pessoas a construírem sua auto-realização; são convidados a despertarem nos indivíduos o amor por si e pelos demais e, por meio dele, a construírem um mundo menos egoísta.

Creio que seja exatamente por conta disso que Clarice tem razão quando escreve que vocação é diferente de talento. Ser vocacionado é, simplesmente, ser chamado. O preparo e a habilitação se darão na caminhada. E isso porque será na caminhada que os chamados se descobrirão a si mesmos integralmente; e, nesse processo, ajudarão outros a fazer tal realização.

Pastores que se vêem como prontos são como gerentes que têm metas a cumprir e empenharão todos os esforços para que sejam atingidas, custe o que custar. Igrejas assim são como casas de custódia que, supostamente, têm números a serem alcançados, ou seja, pessoas a serem presas e mantidas como tal.

Pastores e Igrejas são chamados a anunciarem a libertação operada por Deus em suas vidas. O filho gastador que voltou para casa, ao ser recepcionado amorosamente pelo Pai, foi presenteado com sandálias para os pés; exatamente porque o Pai quer filhos livres em casa. Nada de filhos/servos aprisionados! (Lc 15)

Por essa razão, no necessário processo de formação dos pastores, deve estar clara a urgência de uma dinâmica de auto-realização. Em outras palavras, pastores devem ser convidados amorosamente pela Igreja que os capacita a ter um encontro vivo e contínuo consigo mesmo (e, por conseqüência, com o Criador); um encontro que os faça construir vida interior autêntica; que os faça experimentar a suprema felicidade de ser livre. Creio que somente assim o ofício pastoral encontrará sua verdadeira realização.

Pela mesma razão, considero que os cursos de Teologia (condição especial na formação pastoral) devem resguardar tal perspectiva. Tenho repetido que estudar Teologia é uma forma privilegiada de experimentar Deus hoje. Se, por um lado, a Teologia pode ser um estéril estudo puramente cognitivo e, por vezes, inibidor da Fé; por outro, a genuína Teologia é aquela que nos auxilia no processo emancipatório. Teologia que, nascida da Fé, procura fazer uma experiência autenticamente libertadora. Experiência de “olhar” para as pessoas.

Os que acusam a Teologia de “matar” a Fé o fazem porque tiveram uma equivocada experiência teológica ou, pior, porque não realizaram ainda o exercício necessário da contínua conversão.

Caminhante, são teus rastros

o caminho, e nada mais;

caminhante, não há caminho,

faz-se caminho ao andar.

Ao andar faz-se o caminho,

e ao olhar-se para trás

vê-se a senda que jamais

se há-de voltar a pisar.

Caminhante, não há caminho,

somente sulcos no mar. (Antonio Machado)

É isso: vocação é diferente de talento. E o é porque habilidade se constrói na caminhada. Não creio que haja clareza quanto ao destino, apenas que há que caminhar. Caminhar para frente, para fora, mas, acima de tudo, para dentro!

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