Hoje, dia três de abril de dois mil e treze, meu avô completará oitenta e cinco anos de idade. Não poderemos fazer uma festa tradicional, destas que têm bolo, guaraná, parabéns, foto e, sobretudo, a presença do aniversariante. No dia dezoito de novembro de dois mil e doze, ele se despediu de nós e foi viver doutra forma. O que poderemos fazer é comemorar essa data de outra maneira também.
A morte, apesar de tão impactante, é uma companheira sábia se soubermos com ela conviver. Sua inevitabilidade a faz o acontecimento mais certo da vida, daí a exigência do aprendizado da convivência. Aqueles que por ela já mergulharam deixam-nos, para além da saudade, a memória. E o grande e mais profundo da vida é cultivar, sem saudosismos piegas, a memória, sobretudo a memória das pessoas.
Como nos ensinou o Guimarães Rosa, “a gente não morre; a gente fica encantado”, e como o Riobaldo descobriu que o “tempo é a vida da morte”, a experiência da morte nos ajuda a perceber que a vida é volátil ao extremo e que a morte não é sinônimo de aniquilação. Dá para dizer que morremos porque o tempo passa e, como parte desse universo dinâmico e mutante, mudamos junto com o todo e experimentamos uma radical transformação ao longo do tempo. Por isso, na morte, os que amamos não morrem de fato; ficam encantados!
O encantamento não está, necessariamente, em que vai, antes em quem fica e consegue aprender a cultivar a memória. Em quem consegue descobrir a beleza de quem não está mais conosco e, acima de tudo, depura a lembrança de modo a preservar o belo, o bom e o digno.
O tempo é o espaço da semeadura; a morte, oportunidade da colheita. A vida é o intervalo de fazer e deixar de fazer; a memória, a chance de cultivar o que valeu a pena.
As pessoas especiais são as que passaram por nós e deixaram muito de si conosco. Por isso, delas cultivamos a memória. Por isso, delas sentimos saudades. Por isso, delas, a morte se torna um sacramento todo especial. Por isso, são encantadas.
Meu avô está completando oitenta e cinco anos de serenidade, de uma doçura muito especial. Oito décadas e meia de quem aprendeu a conviver com as intempéries do mar e, apesar disso, não deixou de continuar navegando. Alguém que soube ousar quando a vida exigiu, e soube conservar quando a vida impediu. Um homem simples que andou bem pela corda bamba. Talvez o segredo estivesse no sorriso franco e no humor gratuito. Da vida, o que se leva, aprendi, é a capacidade de rir de si mesmo e fazer graça.
Acredito que tenha reecontrado velhos amigos no céu. Tião (funileiro), Roberto e Nizar Gonçalvez, Tiãozinho, Teco, Amadeu Teixeira, Joaquim Neagle, Juju, Cici Miranda, Décio e tantos outros. Talvez tenha conhecido seu xará alemão, Ludwig von Beethoven. Quem sabe tenha conhecido e tocado trompete junto com Derek Watkins e Chet Baker. Não é certo, mas provável que tenham, todos, feito pequenos saraus antes de pegar no sono. Imagino quantos bons papos estão tendo!
Hoje, meu avô completa oitenta e cinco anos. Bodas de girassol, curiosamente. Deixou pra trás a dureza das bodas de prata, ouro e brilhante e comemora hoje a singela fragilidade dos girassóis. Uma planta sábia que acompanha o caminhar do astro-rei, mas que, resignadamente, quando o sol se põe, se curva reverentemente. Para tudo tem um tempo bem determinado debaixo do sol; tempo, inclusive, de deixar o sol se despedir.
O que me impressiona, porém, na data de hoje, é que estamos em plena Páscoa. E isso não é coincidência; é, ao contrário, um capricho do Encantado. É um sinal de que sempre, apesar da saudade, a vida recomeça.
De uma coisa, disso tudo, estou certo: hoje tem retreta no céu!