A sociedade ocidental é, em muito, subsidiária do legado romano. Direito, administração, engenharia e poesia são heranças importantes do império que dominou boa parte do mundo (chamado) civilizado na Antiguidade.
Somos, por outro lado, semelhantes aos romanos (e não apenas a eles) no que tange ao apreço pela violência.
Só para se ter uma ideia, o imperador Tito, em 80 d.C., organizou em Roma jogos em honra do Coliseu que duraram cem dias. Num só dia, combateram três mil homens. Na geração seguinte, Trajano celebrou uma vitória militar com jogos que duraram cento e vinte e três dias, ao longo dos quais se mataram onze mil animais e combateram dez mil gladiadores, segundo consta.
O tamanho da multidão era proporcional à carnificina. O Coliseu de Roma tinha a capacidade máxima de cinquenta mil lugares, que se esgotavam rapidamente, sendo os espectadores homens e rapazes de todos os estratos sociais. As mulheres só eram permitidas na comitiva do imperador.
Para a elite, os jogos constituíam uma espécie de festa chique, na qual viam um trampolim social. Os senadores, mas em particular os imperadores, competiam na organização dos eventos mais sumtuosos e memoráveis.
A roupa-equipamento do gladiador revelava o corpo de duas maneiras sugestivas: a maioria dos gladiadores tinha a cabeça oculta pelo capacete, o que significava que o combate não era ocasião para se observar as expressões de angústia ou de triunfo; segundo, lutavam com o tronco nu - que servia, não para o exibir, mas como símbolo de bravura positiva. O gladiador derrotado tinha de expor o peito a fim de receber o golpe final. Não podia pestanejar, hesitar nem esquivar-se. Tinha, segundo Cícero, de receber o golpe “com o corpo inteiro”.
Não bastasse toda a demonstração de poder pelo imperador na grandiosidade dos jogos, nada ultrapassava o fato de, no final do combate (ante o apelo do gladiador vitorioso), decidir se devia matar ou poupar o adversário. A multidão rugia dando sua opinião, e o imperador, mediante um sinal de mão (polegar para cima ou para baixo), decidia a sorte do derrotado.
Havia, por certo, uma verdadeira contemplação da morte. Um misto de erotismo e violência. Vale, a esse propósito, observar a tela Habet! (de Simeon Solomon), que retrata de forma contundente o momento da morte de um gladiador refletido nas expressões de desejo e de poder por parte das mulheres.
O que parece uma aula de História, todavia, tem se mostrado uma reprise (às avessas) de um fenômeno contemporâneo que tem feito muita gente dormir mais tarde. Nas madrugadas de sábado para domingo, temos sido prestigiados, no conforto do coliseu domiciliar, com sessões glamurosas de UFC.
UFC (Ultimate Fighting Championship) é uma organização americana de artes marciais mistas (ou MMA- Mixed Martial Arts). As lutas envolvem uma mistura de estilos como Jiu-Jitsu, Boxe, Wrestling, Muay Thay, Karate e outras. Os lutadores combatem em 3 assaltos de 5 minutos cada em um ringue de oito lados (octógono) fechados por uma grade.
Incomodo-me com a popularidade desse (suposto) esporte. Pergunto-me o que faz tanta gente vibrar tanto com a exposição física e moral de seres humanos dilacerando-se mutuamente numa arena borrada de sangue.
Curioso é que, em 1993, inspirado no vale-tudo brasileiro, o UFC foi o primeiro evento renomado da luta realizado nos Estados Unidos. Por permitir qualquer manobra entre os adversários (as únicas proibições eram morder e colocar os dedos nos olhos do oponente), o UFC apresentava lutas normalmente muito violentas, razão pela qual chamou a atenção das autoridades e foi banido de vários estados americanos.
Não sei exatamente o que faz alguém delirar e torcer ao ver uma pessoa ensanguentada cair sobre a lona. Pior ainda: o que faz empresas renomadas investirem sua marca e seus recursos no patrocínio de tal atrocidade.
Associar essa barbárie à esporte é um verdadeiro absurdo. Não vejo como os valores do esporte – especialmente a civilidade – podem ser vistos nessa rinha de homens. Afirmar que não há violência nisso tudo – como insistem “atletas” e “comentaristas” – é um acinte!
Considero um contrassenso total que, no Brasil, se proíba, sob a pena da Lei, briga de galos, mas se incentive, na televisão aberta, essa verdadeira afronta à dignidade humana.
O pior de tudo é que essas lutas estúpidas são o tipo de atividade que não requer nada muito sofisticado: apenas truculência e falta de amor próprio. Nada tão difícil de se encontrar, especialmente para uma juventude desprovida de oportunidades e que vê nos ídolos combatentes da tv um exemplo a ser alcançado para “vencer” na vida.
Reconheço, todavia, que deva haver, sim, um toque de erotismo nessa esculhambação toda. Do contrário, os romanos não proibiram suas mulheres de ir ao Coliseu, tampouco haveria tanta popularidade, hoje, ao se testemunhar homens se agarrando erótica e ferozmente no octógono.
Triste, porém, é saber que há tanta energia dispensada nessa brutalidade. Melhor seria que tivéssemos nos dedicado mais as outras heranças romanas: preferiria refletir mais sobre o Direito em vez de torcer pela vitória do mais forte; preferiria ler ou ouvir Poesia a presenciar a gritaria de um turba ensandecida pelos gemidos da dor.
Chega ser deprimente (pra não dizer risível) a cena final: de um lado, um nocauteado sangrando inconsciente no chão; do outro, um troglodita de mãos ao alto agradecendo a Deus pela vitória!
Pelo menos, não há mais um imperador de polegar a postos para decidir sobre a vida e a morte. Afinal, os tempos são outros, e não seria politicamente correto desconsiderar a dignidade do esporte da rinha de homens!
Resta, apenas, lamentar!