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Prof. Ricardo Lengruber (ricardo@lengruber.com)

Não tomar o nome de Deus em vão


Não tomar o nome de Deus em vão (I)

Se eu ainda alimentava alguma dúvida sobre a relação entre fé e consumo, a tarde de 10 de dezembro de 2011 dirimiu por completo minhas questões sobre o assunto. Fé tornou-se objeto de consumo ou, pior, incentivo ao consumo!

A Rede Globo de Televisão (talvez movida pela concorrência com a Record do Bispo Macedo) e alguns artistas do “mercado gospel” se uniram no festival Promessas, evento de música religiosa evangélica para um grande público no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro.

A música gospel fatura bilhões e tem, cada dia mais, chamado à atenção mídias, gravadoras, políticos e investidores dispostos a mergulhar nesse mar cheio de oportunidades. Pesquisas recentes revelam que esse mercado é um dos mais rentáveis no país (movimenta R$ 1,5 bilhão por ano e é o único segmento fonográfico que cresce em venda de discos no País). Segundo dados da Associação Brasileira de Produtores de Disco (ABPD), o estilo está presente entre os 20 CDs mais vendidos no Brasil.

A música saiu dos templos e invadiu os mercados. Com ela, surgiram artistas, empresários, contratos e tudo que demanda um empreendimento artístico e cultural dessa envergadura.

Está claro para mim que a fé tem um papel social importante e, acima de tudo, relevante (impactante). O discurso da fé não é um entre os demais. É um modo de ver a realidade que molda os demais discursos e, como tal, forma opinião e determina decisões e comportamentos.

Meu conflito está no fato de que a multidão de “fãs” da música gospel não se diferencia do restante da população e, por uma questão de coerência com os princípios que as próprias letras alardeiam, não “fazem diferença” na sociedade.

Continuamos um país com péssima distribuição de renda, de altos índices de analfabetismo, subemprego e corrupção. A representação evangélica nas esferas de governo e legislatura não são em nada melhor ou diferente da política pequena e corrupta que domina no país.

É fato que as igrejas cresceram muito e há hoje uma população consideravelmente grande daqueles que se identificam como “evangélicos”. Mas é fato também que isso não mudou em nada a face da nação, como requeria o Evangelho de Jesus ao nos exortar a sermos “sal da terra e luz no mundo”.

Por outro lado, fico sempre a me perguntar sobre questões teológicas. Primeiro, e mais óbvia, é a observação sobre o conteúdo das letras e a qualidade das músicas. Nada que se aproxime da boa música popular e da poesia brasileira. Há muito dinheiro envolvido e muita riqueza dispensada em tecnologia, marketing e contratos, mas muito pouca qualidade musical de fato. A fé cristã dispõe de um depósito generosamente grande de tradição e reflexão, mas as músicas das rádios e televisões são impressionantemente pálidas, iguais e de baixa qualidade.

Se eu acreditasse na existência de um inferno, diria que os torturadores de lá usam música dessa natureza para açoitar suas vítimas, eternamente!

Além disso, banalizam o nome de Deus. Como já afirmei em outras oportunidades, não há mandamento contra o qual as religiões mais tropeçam do que o segundo deles – “não usarás o nome do Senhor teu Deus em vão”; destaque especial deve ser feito para as rádios e artistas evangélicos. Usam e abusam do nome de Deus como se esse não fizesse a menor diferença. Virou entretenimento e música de recepção. Sairam dos templos, onde funcionavam como instrumento de louvor, e assumiram as hits parades, onde o que vale é a efemeridade da mudança e do ineditismo.

Com cachês milionários – e, diga-se, imorais – os artistas gospel sustentam e reforçam cada dia mais as máximas da teologia da properidade; visão de mundo baseada na ideia de que os abençoados são, necessariamente, bem sucedidos e prósperos. A fé, vista dessa forma, não passa de uma senha para acesso ao mundo do consumo e da felicidade.

Quem antes buscava na igreja um conforto especial para seus dramas e tristezas e, além disso, comprometia-se, pela fé, numa ação convertedora da maldade desse nosso mundo, agora vai ao shopping (com roupa de missa) e, lá, compra um CD do último artista gospel, namora um celular novo na vitrine e, por fim, participa de uma eucaristia à prosperidade no McDonald`s.

Triste que a Igreja tenha saído da marginalidade assim, se assimalando a esse mundo e dele fazendo parte. O Apóstolo Paulo fora esquecido porque suas palavras eram duras demais: “não vos conformeis com este mundo, antes transformai-o pela renovação da vossa mente” (Rm 12,1).

Não usar o nome de Deus em vão (II)

Dias atrás, escrevi um pequeno artigo sobre a relação entre fé e consumo. Refletia um pouco sobre a maneira como a Rede Globo estava se aproximando do público evangélico e como esse, por sua vez, especialmente por meio de seus “artistas”, deixava-se levar pela sedução dos meios de comunicação de massa e tudo que eles incorporam: consumo, ideologia e lucro.

Recebi dezenas de respostas. Muitas delas repletas de defesa e, até, agressão. Muitos outras, entretanto, dispostas a discutir e trazer à tona outros aspectos não discutidos naquele primeiro texto. Foi uma experiência interessante!

Escrevo o presente comentário para esclarecer algumas questões, com base no que li nas mensagens que me remeteram.

Primeiramente, uma nota autobiográfica. Sou cristão, de orientação protestante. Sou formado em Teologia e sou pastor na Igreja Metodista da 1a Região Eclesiástica (Rio de Janeiro).

O fato de ser evangélico não me permite, todavia, fechar os olhos para o óbvio e, pior, ignorar que o atual estado das coisas é sério. Repito: lamento que a música gospel tenha se assimilado ao mercado de bens culturais de consumo e dele faça parte com todos os seus vícios e transgressões.

Não vejo nada de mal em denunciar o que considero equivocado. Mas respeito, profundamente, quem pensa diferente e tem iniciativa em dizê-lo de forma educada.

Mas, para além de evangélico, sou ecumênico. E, como tal, creio na experiência cristã que passa, necessariamente, pelo diálogo, pela tolerância e pelo encontro com o diferente. Por isso, insisto tanto em me aproximar dos que me são distintos e com eles prezo pela comunhão.

Essa mesma disposição me dá, também, a liberdade de refletir sobre a realidade que é maior que meu quintal confessional.

A sociedade brasileira é, desde suas origens, marcada visceralmente pela Igreja Católica. Não dá para pensar a cultura nacional sem passar pelo aspecto religioso e ideológico marcado pelo clericalismo autoritário e pela liberdade da fé popular. Essa mescla paradoxal de magistério e sincretismo forjou o que somos e alcançou, inclusive, facetas de outras confissões religiosas. O que dizer, por exemplo, quando se vê na televisão os programas neo-pentecostais que tão bem dialogam com as religiões afro-brasileiras (mesmo que sob o código do combate e do proselitismo)? Ou pensar na lavagem das escadarias da igreja do Senhor do Bonfim? Isso é fruto de uma matriz cultural plural e profundamente relacional.

Recorro às palavras de um colega para concordar: “as novelas e os enlatados da Globo projetam um universo de difícil decifração para esse contingente, que, vindo dos extratos baixos das classes E e D, não dominam os códigos necessários à operação do relativismo cultural que impera no espírito de nossa época.” E acrescenta: “aliás, ao usar o termo Godspel, parece que a ‘Venus Platinada’ deixa uma porta aberta também aos Carismáticos (católicos). […] Ambos, evangélicos pentecostais e carismáticos, adaptaram a religião cristã à estética do programa de auditório. A nova trindade agora é Silvio Santos, Faustão e Gugu!” (L. F. Tourinho)

O mesmo sentimento que tenho ao ver a Globo vendendo CDs evangélicos tenho em ver os padres da moda, com batas brilhantes, dançando em palcos iluminados e conclamando o povo a bater palma para Jesus.

Trata-se de uma infantilização banalizadora da fé e, mais do que nunca, um reforço sem igual do conservadorismo mais velhista que as instituições religiosas cultivaram ao longo dos séculos.

Se, por um lado, a aparência de “modernidade” encanta, por outro, esconde o rosto real de uma fé clerical, institucional e pouco evangélica de fato.

Como evangélico, não posso nunca deixar de protestar contra os desacertos da prática religiosa; como ecumênico, preciso dialogar, inclusive, sobre as mazelas da fé; mas, acima de tudo, por força de uma experiência teologal, não posso ignorar que a música gospel (evangélica ou católica) da atualidade é, sim, lamentavelmente, o uso indevido do nome de Deus!

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