Prof. Ricardo Lengruber (ricardo@lengruber.com)
4 de dez de 20184 min
As histórias em torno do Natal foram “domesticadas” ao longo do tempo. Pela tradição das igrejas, foram espiritualizadas ao ponto de não dizerem nada de concreto sobre a vida das pessoas; pela sociedade e seus mecanismos políticos e econômicos foram transformadas em propaganda e incentivo para o consumo desenfreado.
O presépio se tornou um teatro inofensivo e o menino da manjedoura uma referência estéril de uma noite de festa e comilança.
Os textos bíblicos alusivos ao Natal são símbolos teológicos de tradições religiosas muito distintas entre si – mas todas diametralmente opostas à pasteurização que veio a se tornar o Natal do consumo e ideologicamente orientado para a manutenção do status quo.
A manjedoura é, por si só, uma denúncia evidente: não há lugar para todos nesse mundo vil. Há aqueles a quem só lhes restam os espaços dos bichos. Há quem sequer o espaço para nascer lhes é resguardado. Há aqueles que, em algum sentido, não têm até mesmo o direito de nascer. A manjedoura denuncia uma sociedade de exclusão. O Deus revelado no Natal de Jesus é, ele mesmo, um excluído – um apartado das hospedarias e dos direitos.
O recenseamento é símbolo da dinâmica política que faz das pessoas massas de manobra que se deslocam ao sabor de interesses de uns poucos. Maria e José são obrigados a saírem de Nazaré rumo a Belém. Fazem o mesmo movimento que obrigou Abrão a sair de sua casa em Ur, ou o que tem feito sistematicamente africanos arriscarem a vida no Mediterrâneo em busca de uma terra prometida (e sempre negada) na Europa. O Deus revelado no Natal de Jesus é, ele mesmo, um migrante – um retirante sem onde reclinar a cabeça.
Os magos que vieram do oriente visitar o menino revelam abertura para o diferente, para o estrangeiro. Outra cultura, outra religião, outra cor de pele, outras pessoas. A estrela que os conduziu é símbolo da tolerância que precisa – hoje mais do que nunca – inspirar mentes, corações e braços. Estrela que supera xenofobia, racismo, homofobia e tantas outras formas de violência. O Deus revelado no Natal de Jesus é, ele mesmo, um símbolo de abertura – do respeito que transcende as verdades pré-concebidas.
Os pastores a quem o anjo do Senhor apareceu com a boa notícia – “não tenham medo ...” – sinalizam os destinatários preferenciais do Evangelho: gente simples que lavra a terra, que têm olhos e ouvidos para os anjos e que é capaz de acolher a presença de Deus (mesmo nos trapos que envolvem um recém-nascido num curral de animais). Os pastores de Belém ajudam a entender a máxima da Palavra de Deus – “não tenham medo ...”. O Deus revelado no Natal de Jesus é, ele mesmo, um trabalhador – gente que, na simplicidade da fé, luta contra o medo para sobreviver.
Herodes é a representação por excelência da ânsia pelo poder e da lógica do vale tudo na garantia do trono. Ao mandar assassinar as crianças de até dois anos de idade, Herodes se torna o símbolo de um mundo que deixa morrer à míngua milhões de crianças sem comida, saneamento, saúde, segurança e educação mundo afora; símbolo de uma cultura que erotiza e monetiza a infância, e rouba-lhe a chance de crescer com a serenidade que os pequenos precisam. O Deus revelado no Natal de Jesus é, ele mesmo, um perseguido – uma vítima inocente que paga o preço dos ambiciosos.
Num tempo de mulheres abandonadas à própria sorte e vítimas permanentes do machismo e da violência masculina, José, “sendo justo e não a querendo infamar”, foi sensível à voz do anjo e acolheu Maria como parceira; ao seu lado assumiu a paternidade do filho de Deus. O Deus revelado no Natal de Jesus é, ele mesmo, um bastardo – desses que tantos desejam na cadeia antes dos dezoito. Maria é mais do que uma jovem piedosa que aceita passivamente uma missão; Maria questiona o próprio Deus – “como isso se dará?”; Maria é um sujeito que acolhe os desígnios de Deus; ela faz uma escolha – “que se cumpra em mim a sua vontade”; Maria enfrenta e denuncia – “derrubou governantes e exaltou os humildes; fartou os famintos e despediu de mãos vazias os ricos.” Maria é mais do que um útero – é toda mulher que coopera na construção do caráter de filhos que aprendem o que é ser, ao mesmo tempo, sensível à voz de Deus e bravo na denúncia das injustiças. O Deus revelado no Natal de Jesus é, ele mesmo, uma mulher – dessas que, vítimas de todo preconceito e discriminação, reconhecem em Deus mais do que religião e rito; enxergam-no como mãe que luta.
A encarnação é afirmação de uma fé que reconhece na carne a sede da presença de Deus. É mais (ou menos) que o corpo – é a carne mesma, o espaço da fraqueza, da dor, da dúvida, do tropeço. É uma fé que aspira à carne. Não é o homem que anseia por ser como Deus; é o próprio Deus que se esvazia e assume a carne humana. É aqui – na minha carne – que Deus habita. O Deus revelado no Natal de Jesus é, ele mesmo, “o verbo que se fez carne”.
O Natal é bem mais do que árvores, bolas, presépios e presentes. Isso mais esconde do que revela, mais engana do que esclarece. O Natal de Jesus é político – porque assume o lugar do trabalhador, do excluído, do retirante, da mulher, do perseguido e de todo aquele que sente na carne, de fato, o que é nascer no curral dos animais.
Por tudo isso, desejar “feliz” Natal não é o mais adequado. É só mais um jeito de domesticar a potência da manjedoura.